quinta-feira, 4 de maio de 2017

Versos no Luiz XV


Estava visitando os pais quando recebeu um telefonema que esperara, ansiosamente, vinte anos atrás. Lembrava-se da tensão do momento de embarcar naquela viagem que transformaria sua juventude no adulto em que se tornara. Ela não ligou, nunca escreveu e nunca mais retornou suas ligações.

Tinham acabado de se formar na faculdade: ele com uma proposta para trabalhar no Nordeste; ela com o desejo de ficar ali e revolucionar o mundo. O amor não conseguiu romper a barreira dos sonhos individuais, mas permaneceu no vácuo, guardado, à espera de um renascimento.

Depois disso, ele passou por um casamento que gerou uma filha e terminou num divórcio tempestuoso e pavoroso. Carregava consigo a marca estigmatizada do “nunca mais aquilo outra vez”. Mas aquele telefonema — a voz embargada, a saudade do que poderia ter dado certo se um tivesse cedido — conduziu-o ao destino. No trajeto, comprou rosas, vinho, chocolates finos, amêndoas e um CD do Chico César, para ouvir Por que você não vem morar comigo repetidas vezes até chegar. Sentia-se um adolescente. Como ela estava? Como estava sua vida, seu corpo, sua boca, sua alma? Perguntas guardadas por vinte anos.

Ela morava num condomínio, na última casa da última rua. Pequena, de madeira, com a grama maltratada à frente e uma cerca branca de ripas paralelas. Desceu com as compras. Esperou dar vinte horas, ensaiou o melhor sorriso e apertou a campainha — silêncio. Agradeceu por não ouvir cachorros latindo; não os suportava, tampouco gatos. Escutou passos arrastados em direção à porta. Quando ela abriu, revelou-se ali uma dor que jamais sentira.

A fraca luz da varanda iluminou uma mulher descabelada, de olhos vagos, tez ressecada, dentes amarelados pela nicotina, vestida com um pijama de flanela ensebado e imundo. Olharam-se. Ela o convidou a entrar com um movimento dos olhos e seguiu até o sofá, onde deixara o maço de cigarros. Além do cheiro insuportável da casa, havia entre os dois um silêncio tão pavoroso quanto deprimente.

Copos e xícaras espalhados, com tocos de cigarro, cinzas e restos de café, perdiam-se pelos cantos. Tateou a parede até encontrar o interruptor e pôde, pela primeira vez, observá-la com calma. Sentiu um misto de pena, raiva, insegurança e medo.

Sem conseguir pensar, fez o que lhe pareceu a mais estúpida das propostas:
— Venha, vou te dar um banho.

Ela sorriu, deu-lhe a mão para levantar-se e indicou o caminho com o queixo. O banheiro estava pior que a sala: vaso entupido, pia represada com cabelos, chão horroroso e um odor impiedoso. Abriu a basculante, testou o chuveiro — água quente. Procurou um sabonete; ela indicou a cômoda com um leve gesto. Tirou a própria roupa, a dela, e colocou-a sob a água. Ela tremeu, agitou-se, tentou sair, mas foi se acalmando. Lavou-lhe os cabelos, ensaboou todo o corpo, escovou-lhe os dentes. Nem lembrou que ali estava uma mulher — a mulher de sua vida. Precisava fazer aquilo, pensou.

Perguntou pela toalha. Ela apontou para o quarto ao lado. Fez sinal para que esperasse, entrou no aposento — também ensebado, com chão pegajoso, cheiro de bolor e roupas espalhadas por toda parte. Abriu a janela, encontrou uma toalha limpa e voltou. Colocou outra toalha sobre uma poltrona gasta, manchada de mofo.

Sentou-a ali, reuniu as roupas espalhadas e colocou-as sobre a colcha imunda da cama. Fez uma trouxa e a deixou do lado de fora. Arrumou a cama, buscou uma roupa limpa, perguntou por uma calcinha; ela negou com o indicador. Vestiu-lhe um pijama comprido, verde-claro, com estampas florais. Secou-lhe os cabelos com um secador esquecido no banheiro, enxugou-lhe os pés e deitou-a em lençóis e fronhas limpas.

Mal a deitou, ela o olhou no fundo da alma, bocejou, acariciou-lhe a nuca — como sempre fizera no passado —, fechou os olhos e dormiu.

Foi até a área externa, pegou um balde e um pano seco e voltou ao quarto. Tentou minimizar a poeira e a sujeira. Limpou o aposento, retirou todas as roupas do guarda-roupa e jogou-as pela janela. Recolheu copos, xícaras, pratos e talheres espalhados e levou tudo à cozinha.

Pegou a caixa de ferramentas na garagem, voltou ao banheiro, desentupiu ralo e vaso, trocou a bucha da torneira, reduziu o caos e o lodo dos azulejos. O outro quarto estava vazio, sem sinais de uso. Abriu a janela e passou um pano úmido no chão. A sala, aos poucos, ganhou ares de limpeza. O cheiro de mofo, vômito, cigarro, comida velha e café azedo cedeu lugar ao ar fresco da noite — exceto pelas cortinas pesadas e pelo tecido do sofá, que deixaria para outro momento.

A cozinha era tão caótica quanto o resto da casa. Ensacou o lixo disperso e levou para fora. A geladeira continha apenas alimentos estragados, abertos ou vencidos — tudo foi descartado. O fogão, em estado lamentável, foi lavado com água e detergente, assim como os armários, esvaziados sem exceção.

Saiu para a área externa e levou roupas, toalhas e lençóis para a pequena lavanderia. Não havia sabão; deixou-os ali. O dia amanhecia quando se deu conta de que aquilo era uma loucura. Resolveu voltar ao quarto, acordá-la, pedir uma explicação, entender o que acontecera.

Chamou-a pelo nome uma, duas, três vezes, até que um pensamento congelou sua existência. Ela parecia… não, não era possível. Aproximou-se devagar, trêmulo, tocou-lhe o braço imóvel. Sim. O que temia havia ocorrido.

Chamou a ambulância. Constataram o inenarrável. O serviço funerário levou o corpo onde habitara o amor. Quando a ciranda terminou e a roda-viva retomou o giro da vida, deu-se conta da tragédia.

Voltou ao quarto, sentou-se na cama e chorou até não conseguir mais. Ao abrir a primeira gaveta do criado-mudo, encontrou um papel de cigarro Luiz XV, plastificado, cuidadosamente guardado. Nele, escrevera versos juvenis de amor eterno e prometera cuidar dela até o fim dos seus dias.









É isto aí!

2 comentários:

  1. Minas Gerais, 4 de maio de 2017

    Caro Paulo,

    Que texto!
    Este ideal de amor não-realizado é lírico quando na distância, mas a tentativa de um regresso é quase sempre desalentadora. Porque precisamos abandonar o ideal e aprendermos a nos relacionar com aquilo que é. Quem está preparado?
    A preparação do encontro dele (com a música maravilhosa, do maravilhoso Chico César - "Por que você não vem morar comigo? Alimentar meu cão, meu ego...") aconteceu num tempo (20 anos antes) e o tempo dela abrir a porta era o agora, o real. Esta é a dor dos regressos, da tentativa de se recuperar o não vivido: o tempo do encontro (real) nunca estará sincronizado com o tempo sonhado (ideal). Só o papel do cigarro Luiz XV conseguiu habitar os dois tempos.
    Abraços,
    Amanda Machado

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    1. Minas Geraes, 04 do maio deste ano de 2017

      Amanda,
      Que bom que gostou! Que bom! Seus comentários sempre são importantes. O real e o Imaginário - isto mesmo - naõ tem como ser diferente.

      Um abraço
      Paulo

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Gratidão!