quarta-feira, 21 de março de 2018

Pausa -poemeu

Sem assunto, apesar de
Sem palavras, apesar de
Sem argumentos, apesar de
Sem forças, apesar de

Sem otimismo, apesar de
Sem disposição, apesar de
Sem confiança, apesar de
Sem racionalidade, apesar de

Sem equilíbrio. apesar de
Sem concentração, apesar de
Sem ambição, apesar de 
Sem dinamismo, apesar de

Minh'alma quer paz
Meu corpo quer guerra
Minha pátria está apátrida
Minha luta é eterna.

É isto aí!

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terça-feira, 13 de março de 2018

Tocando em frente (Renato Teixeira e Almir Sater)

Ando devagar porque já tive pressa 
Levo esse sorriso porque já chorei demais 
Hoje me sinto mais forte, mais feliz, quem sabe?
Só levo a certeza de que muito pouco eu sei
Ou nada sei. 

Conhecer as manhas e as manhãs, 
O sabor das massas e das maçãs, 
É preciso amor pra poder pulsar, 
É preciso paz pra poder sorrir, 
É preciso a chuva para florir.

Penso que cumprir a vida seja simplesmente 
Compreender a marcha e ir tocando em frente 
Como um velho boiadeiro levando a boiada
Eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou
Estrada eu sou. 

Conhecer as manhas e as manhãs, 
O sabor das massas e das maçãs, 
É preciso amor pra poder pulsar, 
É preciso paz pra poder sorrir, 
É preciso a chuva para florir.

Todo mundo ama um dia todo mundo chora, 
Um dia a gente chega, no outro vai embora 
Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si carrega o dom de ser capaz 
De ser feliz.

Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maçãs
É preciso amor pra poder pulsar,
É preciso paz pra poder sorrir, 
É preciso a chuva para florir.

Ando devagar porque já tive pressa 
E levo esse sorriso porque já chorei demais 
Cada um de nós compõe a sua história, 
Cada ser em si carrega o dom de ser capaz
de ser feliz.

Conhecer as manhas e as manhãs, 
O sabor das massas e das maçãs, 
É preciso amor pra poder pulsar, 
É preciso paz pra poder sorrir, 
É preciso a chuva para florir.


Diante da dor, o salto


Dantes
dessa dor
estressante
Desse amor
intrigante

havia um gato
morto
na sacada
do prédio

Hesitante
seu beijo mentolado
provocante
e gelado

e o gato
salta
da sacada
do prédio


É isto aí!

segunda-feira, 12 de março de 2018

Zadig ou o Destino (Voltaire) Parte X - A escravidão

X. A ESCRAVIDÃO

Ao entrar na cidade egípcia, viu-se cercado pelo povo.

- Eis o que raptou a bela Missuf bradavam - e o que acaba de assassinar Cletófis!

- Senhores disse êle, - Deus me livre de raptar algum dia a vossa bela Missuf! É demasiado caprichosa. E, quanto a Cletófis, não o matei: apenas me defendi contra êle. Queria matar-me, porque lhe pedi com




tôda a humildade que poupasse a bela Missuf, a quem batia impiedosamente. Sou um estrangeiro que




vem procurar asilo no Egito; e não teria cabimento que, vindo solicitar vossa proteção, começasse por me




apoderar de uma mulher e por assassinar um homem.




Os egípcios eram então justos e humanos. O povo conduziu Zadig à prefeitura. Começaram por lhe tratar




do ferimento, e em seguida o interrogaram, a êle e ao criado separadamente, a fim de saber a verdade.




Reconheceu-se que Zadig não era um assassino; mas sendo culpado de ter vertido sangue humano, a lei o




condenava à escravidão. Os seus dois camelos foram vendidos em proveito da comuna, repartido entre os




Zadig




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habitantes todo o ouro que trouxera, e sua pessoa exposta em hasta pública, bem como o seu




companheiro de viagem. Um mercador árabe, chamado Setoc, arrematou-o; mas o criado, mais resistente




à fadiga, foi vendido muito mais caro que o patrão. Nem faziam comparação entre os dois Zadig ficou,




como escravo, subordinado a seu serviçal; ligaram um ao outro por uma cadeia prêsa aos tornozelos e,




nesse estado, acompanharam ambos o seu senhor. Zadig, pelo caminho, consolava o criado e exortava-o




à paciência; mas, segundo o seu costume, fazia reflexões sôbre a vida humana: "Vejo - dizia-lhe - que os




males do meu destino se expandem sôbre o teu. Até agora, tudo me saiu muito estranho, na verdade.




Multaram-me por causa de um grifo; mandaram-me a suplício por ter feito versos em louvor do rei;




estive prestes a ser estrangulado porque a rainha tinha fitas amarelas; e eis-me agora escravizado contigo




porque um brutamontes deu uma sova na amante. Mas não percamos a coragem; tudo isso, decerto,




acabará; afinal de contas, os mercadores árabes têm de possuir escravos; e por que não seria eu um




escravo como qualquer outro, visto que sou um homem como qualquer outro? Êsse mercador não pode




ser impiedoso, pois terá de tratar bem a seus escravos, se quiser aproveitá-los". Assim falava êle, mas, no




fundo do coração, estava preocupado com a sorte da rainha de Babilônia.




Setoc, o mercador, partiu, dois dias depois, para a Arábia deserta, com os escravos e camelos. Sua tribo




habitava para as bandas do deserto de Horeb, e a viagem foi longa e penosa.




Setoc, no caminho, fazia mais caso do criado que do patrão, pois o primeiro sabia lidar melhor com os




camelos, e tôdas as pequenas regalias foram para êle.




Um camelo morreu a dois dias de Horeb; dividiram-lhe a carga pelos escravos; Zadig ganhou o seu




quinhão. Setoc pôs-se a rir ao ver todos os escravos marcharem curvados. Zadig tomou a liberdade de




explicar-lhe a razão, e fêz-lhe conhecer as leis do equilíbrio. O mercador, espantado, começou a olhá-lo




de outra maneira. Zadig, vendo que lhe excitava a curiosidade, redobrou-a ensinando-lhe muitas coisas




que não eram estranhas a seu comércio: o pêso específico doa metais e dos gêneros em volume igual; as




propriedades de vários animais úteis; os meios de tornar úteis os que não o eram; em suma,




afigurou-se-lhe um verdadeiro sábio. Setoc o preferiu a seu camarada, a quem tanto estimara. Tratou-o




bem, e não teve de que se arrepender.




Chegado à sua tribo, Setoc reclamou duzentas onças de prata a um hebreu a quem as emprestara em




presença de duas testemunhas; mas estas haviam morrido, e o hebreu disso se aproveitara para ficar com




o dinheiro do mercador, dando graças a Deus por lhe haver proporcionado ensejo de enganar a um árabe.




Setoc confiou a dificuldade a Zadig, que se tornara seu conselheiro.




- Em que local emprestou suas quinhentas onças a êsse infiel? - perguntou-lhe Zadig.




- Sôbre uma larga pedra que se acha ao pé do monte Horeb.




- Qual é o caráter de seu devedor?




- O de um legítimo velhaco.




- Mas o que lhe pergunto é se é um homem vivo ou fleugmático, atilado ou imprudente.




- De todos os maus pagadores, é o mais vivo que eu conheço.




- Pois bem! - insistiu Zadig. - Permita que pleiteie sua causa perante o juiz.




Com efeito, citou o hebreu ao tribunal, e assim falou ao juiz:




Zadig




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- Almofada do trono da eqüidade, venho reclamar a êsse homem em nome de meu senhor, quinhentas




onças de prata, que êle não quer devolver.




- Há testemunhas?




- Não, morreram; mas existe uma larga pedra sôbre a qual foi contado o dinheiro; e, se aprouver a Vossa




Grandeza mandar trazê-la, espero que ela preste testemunho; aqui ficaremos, o israelita e eu, à espera de




que chegue essa pedra; mandarei buscá-la por conta de Setoc, meu senhor.




- Muito bem - concordou o juiz. E pôs-se a despachar outros assuntos.




- E então? - disse êle a Zadig no fim da audiência. - Ainda não chegou a sua pedra?




O hebreu retrucou a rir:




- Poderia Vossa Grandeza ficar aqui até amanhã, que a pedra ainda não chegaria; está a mais de seis




milhas de distância e seria preciso uns quinze homens para transportá-la.




- Estais vendo?! - exclamou Zadig. - Bem disse eu que a pedra prestaria testemunho; já que êsse homem




sabe onde está a pedra, confessa, pois, que foi sôbre ela que se contou o dinheiro.




O hebreu, interdito, viu-se logo obrigado a confessar tudo. O juiz ordenou que fôsse êle atado à pedra,




sem beber nem comer, até devolver as quinhentas onças, que foram pagas sem demora.




O escravo Zadig e a pedra alcançaram grande fama em tôda a Arábia.

domingo, 11 de março de 2018

Zadig ou o Destino (Voltaire) Parte IX - A mulher batida

IX. A MULHER BATIDA

Zadig orientava-se pelas estrelas. A constelação de Orion e o brilhante astro de Sírio guiavam-no para o pólo de Canope. Admirava esses vastos globos de luz que não parecem a nossos olhos mais que fracas centelhas, ao passo que a terra, que em verdade é apenas um imperceptível ponto na natureza, afigura-se à nossa cupidez uma coisa tão grande e tão nobre. Via então os homens tais como são na realidade: - insetos a se entredevorarem num pequeno átomo de lama. Essa imagem verdadeira parecia aniquilar suas desventuras, retraçando-lhe o nada da sua existência e a de Babilônia. Sua alma arrebatava-se até o infinito e contemplava, liberta dos sentidos, a imutável ordem do universo.

Mas quando, em seguida, de volta a si mesmo e penetrando de novo em seu coração, pensava em Astartéia sacrificada por sua causa, o universo desaparecia a seus olhos, e ele apenas via, em toda a natureza, Astartéia moribunda e Zadig desgraçado. Enquanto se entregava a esse fluxo e refluxo de sublime filosofia e dor acabrunhante, ia avançando pelas fronteiras do Egito; e já seu fiel criado se achava na primeira localidade, em busca de alojamento.

Enquanto isso, Zadig passeava pelos jardins dos arredores. Senão quando avistou, não longe estrada real, uma mulher que gritava por socorro e um homem furioso que a perseguia. Já o homem a alcançava e ela, caída, enlaçava-lhe os joelhos. O homem enchia-a de pancadas e censuras. Pela violência do egípcio e pelos reiterados perdões que lhe pedia a dama, viu Zadig que ele era ciumento e ela infiel. Mas, depois de atentar naquela mulher, que era de impressionante beleza e até se assemelhava um pouco à infeliz Astartéia, sentiu-se tomado de compaixão por ela e aversão ao egípcio. "Acode-me! - bradou ela a Zadig, entre soluços. - Arranca-me das mãos do mais bárbaro dos homens, salva-me a vida!"

A êeses clamores, Zadig lançou-se entre ela e aquele bárbaro. Tinha algum conhecimento da língua egípcia, e assim lhe falou:

- Se tens alguma humanidade, conjuro-te a respeitar a beleza e a fraqueza. Podes assim ultrajar uma obra-prima da Criação, que jaz a teus pés e só tem por defesa as lágrimas?

- Ah! Ah! - exclamou o possesso. Com que então também a amas? É de ti que tenho de vingar-me.

Dizendo tais palavras, deixa a dama, que segurava pelos cabelos, e, empunhando a lança, tenta matar o estrangeiro. Este, que não perdera o sangue frio, evitou facilmente o golpe de um furioso. Segurou a lança perto da ponta. Quer um retirá-la, o outro arrancá-la. A lança parte-se. O egípcio puxa da espada; Zadig também. Atacam-se. Lança este cem golpes precipitados, apara-os aquele com destreza. A dama, sentada na relva, reajusta os cabelos e olha-os. O egípcio era o mais robusto, Zadig o mais ágil.

Batia-se o último como um homem cuja cabeça conduzia o braço, e o primeiro como um arrebatado, cuja cólera cega lhe guiava ao acaso os movimentos. Zadig desarma-o. E como o egípcio, mais furioso, procura arremeter contra ele, Zadig segura-o, domina-o, fá-lo cair e, apontando-lhe a espada contra o peito, oferece poupar-lhe a vida. O egípcio, fora de si, arranca o punhal e fere Zadig no mesmo instante em que o vencedor lhe perdoava. Zadig, indignado, lhe mergulha a espada no peito; O egípcio lança um grito horrível e morre, debatendo-se.

Zadig avança então para a dama e lhe diz respeitosamente:

- Foi ele que me obrigou a matá-lo; estais vingada, e livre do homem mais violento que já vi na minha vida. Que quereis agora de mim, senhora?

- Que morras, celerado, que morras; mataste o meu amor; eu quisera estraçalhar-te o coração.

- Na verdade, senhora que tínheis um esquisito amor; ele vos batia com toda a fôrça e queria tirar-me a vida, por me haverdes pedido socorro.

- Quisera que ele me batesse ainda - tornou a dama, aos gritos. - Eu bem que o merecia, pois lhe dei motivos para ciúmes. Quem dera que ele me batesse e que tu estivesses no seu lugar!

Zadig, mais surpreso e encolerizado do que nunca estivera em sua vida, retrucou:

- Senhora, com toda a vossa beleza, merecíeis que eu vos batesse por minha vez, tão incoerente sois; mas não me darei a esse trabalho. Dito isto, montou no camelo e dirigiu-se para a cidade. Mal dera alguns passos, volta-se ao estrépito que faziam quatro correios de Babilônia. Vinham a toda brida. Um deles, ao ver a mulher, exclamou: "É ela mesma; assemelha-se à descrição que nos fizeram".

Sem dar atenção ao morto, apoderaram-se logo da dama, a qual não cessava de gritar para Zadig: 

"Socorrei-me outra vez, generoso estrangeiro! Perdoai-me por me haver queixado de vós. Socorrei-me, que serei vossa até o túmulo".

A Zadig, passara-lhe todo e qualquer desejo de se bater por ela. "Arranja-te com outros - respondeu-lhe, a mim é que não me pegas mais!"

Aliás, estava ferido, perdia sangue e necessitava socorro; e a vista dos quatro babilônios, provavelmente enviados pelo rei Moabdar, enchia-o de inquietação. Avança às pressas para a aldeia, sem atinar por que motivo vinham quatro correios de Babilônia apoderar-se daquela egípcia, mas ainda muito mais espantado com o caráter da referida dama.

sábado, 10 de março de 2018

Zadig ou o Destino (Voltaire) Parte VIII - O Ciúme

VIII. O CIÚME

A desgraça de Zadig originou-se da própria ventura, e principalmente de seu mérito. Avistava-se todos os dias com o rei e Astartéia, sua augusta esposa. O encanto da conversação do primeiro ministro era redobrado por esse desejo de agradar que está para o espírito como o ornamento para a beleza; sua juventude e graça causaram insensivelmente em Astartéia uma impressão de que esta a princípio não se apercebeu. Sua paixão crescia no seio da inocência.

Astartéia entregava-se sem escrúpulo e sem temor ao prazer de ver e escutar a um homem tão caro a seu esposo e ao Estado; não cessava de o elogiar perante o rei; falava dele às damas de companhia, que ainda acrescentavam os louvores; tudo concorria para lhe aprofundar no coração a flecha que ela não sentia. Fazia presentes a Zadig, nos quais entrava mais galanteria do que supunha; julgava não lhe falar senão como rainha satisfeita de seus serviços, e suas expressões eram, algumas vezes, as de uma mulher sensível.

Astartéia era muito mais bonita do que aquela Semira que tanto odiava aos caolhos, e do que aquela outra mulher que quisera cortar o nariz ao esposo. A familiaridade de Astartéia, suas ternas frases, de que começava a corar, seus olhares, queria desviar, e que se fixavam nos dele, acenderam no coração de Zadig uma flama que o espantou. Lutou; pediu socorro à filosofia, que sempre lhe valera; mas só lhe obteve luzes, não recebendo em troca nenhum alívio. O dever, a gratidão, a soberana majestade violada, apresentavam-se-lhe aos olhos como deuses vindicativos; lutava e triunfava; mas essa vitória que era preciso renovar a todo momento, custava-lhe gemidos e lágrimas.

Não mais ousava falar à rainha com aquela doce liberdade que tais encantos tivera para ambos; seus olhos cobriam-se de uma nuvem; suas palavras eram constrangidas e incoerentes; baixava as pálpebras; e quando, sem querer, o seu olhar se voltava para Astartéia, encontrava o da rainha turbado de lágrimas, de onde partiam raios; pareciam dizer um ao outro: "Nós nos adoramos, e temos medo do amor; ardemos os dois num fogo que condenamos."

Zadig retirava-se desvairado da sua presença, com um peso no coração, que não mais podia suportar; na violência da sua agitação, não pôde evitar que o amigo Cador lhe descobrisse o segredo, como um homem que, tendo agüentado por muito tempo uma dor profunda, deixa enfim revelar-se o seu mal, por um grito que lhe arranca um acesso mais agudo e pelo suor que poreja a fronte.

- Já desvendei - lhe disse Cador - os sentimentos que a ti mesmo procuravas ocultar; as paixões têm sinais que não enganam. Por aí verás, meu caro Zadig, já que eu li no teu coração, se o próprio rei não irá descobrir um sentimento que o ofende. Não tem êle outro defeito senão o de ser o mais ciumento dos homens. Resistes à tua paixão com mais fôrça do que a rainha combate a sua, porque és filósofo e porque és Zadig. Astartéia é mulher; deixa falar seus olhares com tanto maior imprudência por ainda não se julgar culpada. Infelizmente tranqüilizada pela sua inocência, negligencia as aparências necessárias. Tremerei por ela enquanto não tiver nada que se censurar. Se estivessem ambos em cumplicidade, saberiam enganar todos os olhos: uma paixão nascente e combatida logo se revela; um amor satisfeito sabe ocultar-se.

Zadig fremiu à idéia de trair o rei seu benfeitor; e nunca foi tão fiel ao príncipe como quando se viu
culpado para com êle de um crime involuntário. Contudo, tantas vezes pronunciava a rainha o nome de Zadig, tal rubor lhe cobria a fronte ao dizê-lo; ora se mostrava tão animada, ora tão interdita, quando lhe falava em presença do rei; caía em tão profundas cismas depois que Zadig se retirava, que o rei se sentiu inquieto. Acreditou tudo o que via, e imaginou tudo o não via.

Observou  principalmente que as babuchas de sua mulher eram azuis, e que as babuchas de Zadig eram azuis, que as fitas da touca de sua mulher eram amarelas, e que o barrete de Zadig era amarelo: indícios terríveis para um príncipe suscetível. No seu espírito envenenado, transformaram-se as suspeitas em certezas.

Os escravos dos reis e das rainhas são outros tantos espias de seus corações. Descobriram logo que
Astartéia amava e que Moabdar sentia ciúmes. O invejoso fez a invejosa enviar ao rei a sua liga, que se assemelhava à da rainha. Por cúmulo da desgraça, essa liga era azul, O monarca não pensou senão na maneira de vingar-se. Resolveu uma noite mandar envenenar a rainha, e enforcar Zadig ao raiar do dia. A ordem foi transmitida a um impiedoso eunuco, executor das suas vinganças.

Achava-se então na câmara do rei um anãozinho que era mudo, mas não surdo. Toleravam-no sempre em toda parte: era testemunha de tudo o que se passava de mais secreto, como um animal doméstico. Esse pequeno mudo era muito devotado à rainha e a Zadig. Ouviu, com tanta surpresa quanto horror, a sentença de morte. Mas como prevenir essa terrível ordem, que dentro em poucas horas seria executada? Escrever, não sabia; mas aprendera a desenhar e fazia retratos com muita parecença. Passou uma parte da noite a rabiscar o que desejaria dizer à rainha.

O desenho representava o rei furioso, a um canto do quadro; um cordão azul e um vaso sôbre uma mesa, com ligas azuis e fitas amarelas; a rainha, no meio do quadro, expirante entre os braços de suas mulheres, e Zadig estrangulado a seus pés. O horizonte representava um sol nascente, para indicar que a horrível execução se efetuaria aos primeiros raios da aurora. Logo que terminou o trabalho, correu a uma camareira de Astartéia, despertou-a, e deu-lhe a entender que era preciso levar imediatamente o quadro à rainha.

Em meio à noite, batem à porta de Zadig; acordam-no; entregam-lhe um bilhete da rainha; pensa que está sonhando; abre o papel com mão tremente. Qual não foi a sua surpresa, e quem lhe poderia exprimir a consternação e desespero, ao ler as seguintes palavras:

"Foge imediatamente, senão te arrancam a vida. Foge, Zadig, ordeno-te em nome do nosso amor e das minhas fitas amarelas. Eu não era culpada; mas sinto que vou morrer criminosa."

Zadig mal teve fôrças de falar. Mandou chamar Cador e, sem nada lhe dizer, mostrou-lhe o bilhete.

Cador forçou-o a obedecer e a tomar logo o caminho de Mênfis. "Se te atreves a ir falar com a rainha, apressas a sua morte; se falares ao rei, da mesma forma prejudicarás a rainha. Encarrego-me do seu
destino; segue o teu. Espalharei o boato de que partiste para a Índia Em breve me encontrarei contigo e te comunicarei o que houver sucedido em Babilônia".

Cador, no mesmo instante, mandou trazer dois dromedários dos mais rápidos a uma porta secreta do palácio; fêz com que Zadig montasse tendo até de ampará-lo, pois parecia prestes a entregar a alma. Um só criado o acompanhou; em breve Cador, transido de espanto e angústia, perdeu de vista o amigo.

O ilustre fugitivo, chegando ao alto de uma colina de onde se avistava Babilônia, volveu o olhar para o palácio da rainha, e desfaleceu; só recuperou os sentidos para derramar lágrimas e desejar a morte. Enfim, depois, de se haver ocupado do deplorável destino da mais amável entre as mulheres e a  primeira do mundo, voltou o pensamento para si mesmo e exclamou:

"Que coisa é então a vida humana? De que me serviste, ó virtude? Duas mulheres me enganaram indignamente; a terceira, que não é culpada, e mais bela que as outras, vai perder a vida. Todo o bem que pratiquei foi sempre para mim uma fonte de maldições, e só fui elevado ao cúmulo da grandeza para tombar no mais horrível precipício do infortúnio. Se eu tivesse sido mau como tantos outros, seria hoje feliz como eles".

Acabrunhado por essas funestas reflexões, cobertos os olhos pelo véu da dor, a palidez da morte nas faces, e a alma abismada no mais sombrio desespero, se guia ele a caminho do Egito.

terça-feira, 6 de março de 2018

Curvas do tempo (poemeu)

Desenhei
de memória
(rasguei teus retratos, lembra?)
as curvas
do teu corpo (que nunca esqueci)
no meu presente
e, saiba ...
foi muito difícil.
que curvas!
ainda estão todas lá,
num passado
particípio triste
onde sonhava
com um futuro
que não existe (mais ... nunca mais)

É isto aí!

Zadig ou o Destino (Voltaire) Parte VII - Demandas e Audiências

VII. DEMANDAS E AUDIÉNCIAS

Assim mostrava ele todos os dias a sutileza de seu gênio e a bondade de sua alma; admiravam-no e, no entanto, o amavam. Passava pelo mais afortunado dos homens; todo o Império estava cheio de seu nome; todas as mulheres o traziam de olho; todos os cidadãos lhe celebravam a justiça; tinham-no os sábios como um oráculo; os próprios sacerdotes confessavam que ele sabia mais que o velho arquimago Yebor.

Longe se estava agora de o processar por causa de grifos; só se acreditava no que lhe parecia crível. Havia em Babilônia uma grande querela que, tendo começado há coisa de mil e quinhentos anos, ainda dividia o Império em duas seitas irreconciliáveis: pretendia uma que jamais se deveria entrar no templo de Mitra a não ser com o pé esquerdo; abominava a outra tal costume, e só entrava com o pé direito.

Estava o universo com os olhos pregados nos dois pés, e toda a cidade agitada e suspensa. Zadig entrou no templo saltando de pés juntos, e em seguida provou, numa eloqüente oração, que ao Deus do céu e da terra, que não faz exceção de pessoa, tanto lhe importa a perna esquerda como a perna direita.

O invejoso e a mulher acharam que no seu discurso não havia figuras suficientes, nem que fizera devidamente dançar os montes e as colinas. "É seco e sem inspiração - diziam. Não se lhe vê nem o mar fugir, nem tombarem as estrelas, nem o sol fundir-se como cera; falta-lhe o bom estilo oriental".

Zadig contentava-se em ter o estilo da razão. Todo o mundo concordou com ele, não porque estivesse no bom caminho, não porque fosse razoável, ou amável, mas porque era o primeiro vizir. Com igual felicidade se resolveu o grande processo entre os magos brancos e os magos negros. Sustentavam os brancos que era uma impiedade voltar-se, quando se orava a Deus, para o Levante; asseguravam os negros que Deus tinha horror às preces dos homens que se voltavam para o Poente.

Zadig ordenou que cada qual se voltasse para onde bem lhe parecesse.

Achou meio de expedir, pela manhã, os negócios particulares e os gerais; destinava o resto do dia ao embelezamento de Babilônia; mandava representar tragédias que faziam chorar e comédias que faziam rir, o que de há muito passara de moda, mas a que o seu discernimento dera novo crédito. Não pretendia saber mais que os artistas; recompensava-os com benefícios e distinções, e não se enciumava em segredo com o seu talento.

À noite, divertia muito ao rei, e principalmente à rainha. Dizia o rei: "o grande ministro!", e a rainha: "o amável ministro!" e ambos acrescentavam: "Que pena se o tivessem enforcado!"

Jamais um homem na sua posição foi obrigado a conceder tantas audiências às damas. A maioria vinha falar-lhe de complicações que não tinham, para arranjarem alguma com ele.

A mulher do invejoso foi das primeiras que se apresentaram; jurou-lhe por Mitra, pelo Zend-Avesta, e pelo fogo sagrado, que fora contra o procedimento do marido; confiou-lhe depois que este era um ciumento, um brutal; deu-lhe a entender que os deuses o puniam recusando-lhe os preciosos efeitos desse fogo sagrado só pelo qual é o homem semelhante aos imortais; acabou por deixar cair a liga; Zadig apanhou-a com a ordinária polidez, mas não a prendeu ao joelho da dama; e essa pequena falta, se o era, foi causa dos mais tremendos infortúnios.

Zadig não pensou mais no caso, e a mulher do invejoso pensou muito.

Outras damas se apresentavam todos os dias. Rezam os anais secretos de Babilônia que ele sucumbiu
uma vez, mas muito se espantou de o fazer sem volúpia e enlaçar a amante distraidamente. Aquela a quem dera, quase sem o notar, testemunhos da sua proteção, era uma camareira da rainha Astartéia. Essa terna babilônia dizia consigo mesma, para se consolar: "Que de negócios não terá esse homem na cabeça, para que sempre ande pensando neles, até quando pratica o amor!"

No instante em que muitas pessoas não dizem patavina e outras só pronunciam palavras sagradas, Zadig exclamara de súbito: "A rainha!"

Julgou a babilônia que ele afinal voltara a si num bom momento e que lhe dizia: "Minha rainha!" Mas Zadig, sempre absorto, pronunciou o nome de Astartéia. A dama que, naquelas felizes circunstâncias, interpretava tudo em proveito seu, imaginou que aquilo queria dizer: "Tu és mais linda que a rainha Astartéia!" Saiu do serralho de Zadig cheia de belos presentes.

Foi contar a aventura à invejosa, que era sua íntima amiga; esta se sentiu cruelmente ofendida com a preferência.

Ele nem se dignou - disse ela - prender-me esta liga, que eu aliás - não quis mais usar.

- Oh! Imagina! - disse a feliz à invejosa. - Essas tuas ligas são idênticas às da rainha! São feitas pela mesma costureira?"

A invejosa ficou absorta em cismas, nada respondeu e foi consultar seu marido, o invejoso.

No entanto, Zadig se dava conta de suas continuas distrações durante as audiências e julgamentos; não
sabia a que atribuí-las: era esse o seu único cuidado.

Teve um sonho: parecia-lhe estar deitado a princípio sobre ervas secas, entre as quais algumas espinhosas, que o incomodavam, e que depois repousava brandamente num leito de rosas, de onde saia uma serpente que o feria no coração com sua língua aguda e peçonhenta.

"Ai! - dizia êle, - bem sei que estive por muito tempo deitado naquelas ervas secas e espinhentas e agora me acho num leito de rosas; mas que significará a serpente ?"

quinta-feira, 1 de março de 2018

Zadig ou o Destino (Voltaire) Parte VI - O Ministro

VI. O MINISTRO

Perdera o rei seu primeiro ministro. Escolheu Zadig para substituí-lo. Todas as belas damas de Babilônia aplaudiram a escolha, pois desde a fundação do império não houvera um ministro tão jovem. Todos os cortesãos ficaram descontentes; o invejoso chegou a escarrar sangue, e seu nariz aumentou prodigiosamente. 

Depois de agradecer ao rei e à rainha, Zadig foi também agradecer ao papagaio:

- Belo pássaro, foste tu quem me salvou a vida e quem me fez primeiro ministro: a cadela e o cavalo de suas Majestades me haviam feito bastante mal, mas tu me fizeste bem. Eis do que depende o destino dos homens! Mas - acrescentou ele, - tão estranha felicidade talvez se acabe dentro em breve.

- Sim - respondeu o papagaio. O que não deixou de impressionar a Zadig. No entanto, como era bom físico e não acreditasse que os papagaios tivessem o dom da profecia, logo se tranqüilizou e pôs-se a exercer o ministério da melhor forma possível.

Fez pesar sobre todos o sagrado poder das leis, e a ninguém fez sentir o peso de sua própria dignidade:

- Não interferiu nos votos do divã, e cada vizir podia ter sua opinião sem lhe cair no desagrado. 

- Quando julgava uma causa, não era ele quem julgava, era a lei, mas, quando esta era demasiado severa, sabia-a temperar, e, se não havia leis sobre a matéria, a sua eqüidade as criava tais que poderiam ser tomadas pelas do próprio Zoroastro.

- Foi dele que herdaram as nações este grande princípio: antes arriscar-se a salvar um culpado que condenar um inocente. Acreditava que as leis eram feitas para socorrer os cidadãos, tanto quanto para os intimidar. Seu principal talento consistia em deslindar a verdade, que todos os homens procuram obscurecer.

Logo nos primeiros dias de sua administração, pôs à prova esse inestimável dom. Morrera na Índia um famoso negociante de Babilônia; constituíra herdeiros seus dois filhos varões, em partes iguais, depois que houvessem casado a irmã, e deixava ainda trinta mil moedas de ouro àquele dentre dois filhos que ficasse provado ter-lhe mais amor. O velho erigiu-lhe um túmulo, o segundo aumentou com uma parte da própria herança o dote da irmã. "É o mais velho diziam todos - o que mais ama a seu pai; o mais moço mais amor à irmã; é ao mais velho que pertencem as trinta mil moedas".

Zadig mandou chamar a ambos separadamente. Disse ao mais velho:

- Teu pai não morreu; curou-se de sua doença e está de regresso a Babilônia.

- Louvado seja Deus - respondeu o jovem. - Mas eis aí um túmulo que me custou bastante caro!

Zadig disse em seguida a mesma coisa ao mais moço.

- Louvado seja Deus - respondeu este. - Vou devolver a meu pai tudo o que tenho; mas desejaria que ele deixasse com minha irmã o que lhe dei por dote.

- Não devolverás nada - disse Zadig e terás as trinta mil moedas: és tu que tens mais amor a teu pai.

Uma jovem muito rica prometera casamento a dois magos e, depois de haver recebido, por alguns meses, doutrinação de um e outro, viu-se em estado de gravidez. Ambos queriam desposá-la.

Tomarei para marido - declarou ela - aquele que me pôs em condições de dar um cidadão ao Império.

- Fui eu que fiz essa boa obra - disse um.

- Fui eu que tive essa vantagem - afiançou o outro.

- Pois bem - concluiu ela, - reconhecerei como pai da criança aquele que lhe puder dar melhor educação.

Nasceu-lhe um menino. Cada um dos magos quer encarregar-se da sua educação. A causa é levada perante Zadig, que manda chamar os dois litigantes.

- Que ensinarás a teu pupilo? - pergunta ele ao primeiro.

- Ensinar-lhe-ei - diz o doutor - as oito partes da oração e dialética, astrologia, demonomania e o que vêm a ser a substância e o acidente, o abstrato e o concreto, as mônadas e a harmonia preestabelecida.

- Eu - diz o segundo - procurarei torná-lo justo e digno de ter amigos.

Zadig pronunciou-se:

- Seja ou não o segundo o pai da criança, desposarás a sua mãe.