terça-feira, 6 de março de 2018

Zadig ou o Destino (Voltaire) Parte VII - Demandas e Audiências

VII. DEMANDAS E AUDIÉNCIAS

Assim mostrava ele todos os dias a sutileza de seu gênio e a bondade de sua alma; admiravam-no e, no entanto, o amavam. Passava pelo mais afortunado dos homens; todo o Império estava cheio de seu nome; todas as mulheres o traziam de olho; todos os cidadãos lhe celebravam a justiça; tinham-no os sábios como um oráculo; os próprios sacerdotes confessavam que ele sabia mais que o velho arquimago Yebor.

Longe se estava agora de o processar por causa de grifos; só se acreditava no que lhe parecia crível. Havia em Babilônia uma grande querela que, tendo começado há coisa de mil e quinhentos anos, ainda dividia o Império em duas seitas irreconciliáveis: pretendia uma que jamais se deveria entrar no templo de Mitra a não ser com o pé esquerdo; abominava a outra tal costume, e só entrava com o pé direito.

Estava o universo com os olhos pregados nos dois pés, e toda a cidade agitada e suspensa. Zadig entrou no templo saltando de pés juntos, e em seguida provou, numa eloqüente oração, que ao Deus do céu e da terra, que não faz exceção de pessoa, tanto lhe importa a perna esquerda como a perna direita.

O invejoso e a mulher acharam que no seu discurso não havia figuras suficientes, nem que fizera devidamente dançar os montes e as colinas. "É seco e sem inspiração - diziam. Não se lhe vê nem o mar fugir, nem tombarem as estrelas, nem o sol fundir-se como cera; falta-lhe o bom estilo oriental".

Zadig contentava-se em ter o estilo da razão. Todo o mundo concordou com ele, não porque estivesse no bom caminho, não porque fosse razoável, ou amável, mas porque era o primeiro vizir. Com igual felicidade se resolveu o grande processo entre os magos brancos e os magos negros. Sustentavam os brancos que era uma impiedade voltar-se, quando se orava a Deus, para o Levante; asseguravam os negros que Deus tinha horror às preces dos homens que se voltavam para o Poente.

Zadig ordenou que cada qual se voltasse para onde bem lhe parecesse.

Achou meio de expedir, pela manhã, os negócios particulares e os gerais; destinava o resto do dia ao embelezamento de Babilônia; mandava representar tragédias que faziam chorar e comédias que faziam rir, o que de há muito passara de moda, mas a que o seu discernimento dera novo crédito. Não pretendia saber mais que os artistas; recompensava-os com benefícios e distinções, e não se enciumava em segredo com o seu talento.

À noite, divertia muito ao rei, e principalmente à rainha. Dizia o rei: "o grande ministro!", e a rainha: "o amável ministro!" e ambos acrescentavam: "Que pena se o tivessem enforcado!"

Jamais um homem na sua posição foi obrigado a conceder tantas audiências às damas. A maioria vinha falar-lhe de complicações que não tinham, para arranjarem alguma com ele.

A mulher do invejoso foi das primeiras que se apresentaram; jurou-lhe por Mitra, pelo Zend-Avesta, e pelo fogo sagrado, que fora contra o procedimento do marido; confiou-lhe depois que este era um ciumento, um brutal; deu-lhe a entender que os deuses o puniam recusando-lhe os preciosos efeitos desse fogo sagrado só pelo qual é o homem semelhante aos imortais; acabou por deixar cair a liga; Zadig apanhou-a com a ordinária polidez, mas não a prendeu ao joelho da dama; e essa pequena falta, se o era, foi causa dos mais tremendos infortúnios.

Zadig não pensou mais no caso, e a mulher do invejoso pensou muito.

Outras damas se apresentavam todos os dias. Rezam os anais secretos de Babilônia que ele sucumbiu
uma vez, mas muito se espantou de o fazer sem volúpia e enlaçar a amante distraidamente. Aquela a quem dera, quase sem o notar, testemunhos da sua proteção, era uma camareira da rainha Astartéia. Essa terna babilônia dizia consigo mesma, para se consolar: "Que de negócios não terá esse homem na cabeça, para que sempre ande pensando neles, até quando pratica o amor!"

No instante em que muitas pessoas não dizem patavina e outras só pronunciam palavras sagradas, Zadig exclamara de súbito: "A rainha!"

Julgou a babilônia que ele afinal voltara a si num bom momento e que lhe dizia: "Minha rainha!" Mas Zadig, sempre absorto, pronunciou o nome de Astartéia. A dama que, naquelas felizes circunstâncias, interpretava tudo em proveito seu, imaginou que aquilo queria dizer: "Tu és mais linda que a rainha Astartéia!" Saiu do serralho de Zadig cheia de belos presentes.

Foi contar a aventura à invejosa, que era sua íntima amiga; esta se sentiu cruelmente ofendida com a preferência.

Ele nem se dignou - disse ela - prender-me esta liga, que eu aliás - não quis mais usar.

- Oh! Imagina! - disse a feliz à invejosa. - Essas tuas ligas são idênticas às da rainha! São feitas pela mesma costureira?"

A invejosa ficou absorta em cismas, nada respondeu e foi consultar seu marido, o invejoso.

No entanto, Zadig se dava conta de suas continuas distrações durante as audiências e julgamentos; não
sabia a que atribuí-las: era esse o seu único cuidado.

Teve um sonho: parecia-lhe estar deitado a princípio sobre ervas secas, entre as quais algumas espinhosas, que o incomodavam, e que depois repousava brandamente num leito de rosas, de onde saia uma serpente que o feria no coração com sua língua aguda e peçonhenta.

"Ai! - dizia êle, - bem sei que estive por muito tempo deitado naquelas ervas secas e espinhentas e agora me acho num leito de rosas; mas que significará a serpente ?"

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