segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

O Analista da Pitangueira e o cliente nervoso



- O que o trás aqui hoje? 

Acho que estou nervoso, deve ser isto, só estou nervoso.

- Entendo

Entende mesmo ou apenas quer um ponto convergente de confiança na relação terapeuta/paciente?

- Qual a sua opinião quanto a isto?

Sei lá, porra, caralho, merda, merda merda. Não sei. Estou nervoso, esquisito, sei , estranho.

- Defina "estou nervoso".

Olha só, apesar de não me irritar com facilidade; nem perder a razão muito facilmente, choro, tenho chorado aqui e ali, aí fico quieto, com vergonha de chorar.

- Vamos voltar a este ponto. Muito interessante, mas antes defina esquisito para mim. 

Chorar faz de mim um ser esquisito. Outro dia ela falou que não chora, justamente após abrir meu flanco de defesa e confessar que tenho chorado. Disse num tom superior, sei lá, achei esquisito.

- Ela? Temos uma "ela"?

Não quero falar sobre ela.

- Tudo bem! Defina o que é ser estranho.

Sabe, fica tocando uma música antiga na minha memória, que não consigo desligar.

- Uma música? Interessante, e o que diz esta música? Ela é real, existe fora da sua memória?

Sim, é real, é do Jessé, lembra dele? 

- Humm, sinceramente não.

Então, faleceu tem uns vinte anos, era cantor e compositor.

- E  a música?

Então, tem a versão Jessé e e a versão "dela"

- Dela? 

É ... tem a versão modificada daquela que não quero falar sobre ela.

- E você consegue falar os versos?

Sim, sei os versos dela, modificados

- Então fala

Vou tentar ...

Dentro de mim aparece às vezes
esta mulher que em mim vive em segredo
Um ser estranho que até tenho medo
Que algum dia me expulse de mim

É mais doída que a própria ferida
É mais calada que o próprio silêncio
E tem a idade em que nada é proibido
Vive comigo dentro de mim

Corre pra dentro de mim como se eu fosse uma espécie de abrigo
Fala comigo tal qual a um amigo
E me aconselha a fazer tudo aquilo que a coragem não deixa fazer
Quando eu não faço ela faz
Quando eu não quero ela é audaz

Quando se zanga consegue o que quer
Às vezes me diz que não quer ser ... minha mulher
Mas sente falta de mim numa hora qualquer
Essa mulher grita dentro de mim quando calo
Essa mulher chora dentro de mim quando canto

Essa mulher ri do meu sofrimento se amo
Essa mulher sai de dentro mim quando sonho
Essa mulher morre dentro de mim quando grito
Essa mulher me dá sua mão quando sofro

Ela é tão "eu" que, às vezes, não sei quem é ela
É tão só que, às vezes, não sei se sou eu
Ela é a vida, é a morte, é doida
É doída como um corte no fundo do meu coração.

- Puxa vida! Que coisa linda! Você tem a versão original?

Claro, doutor - está AQUI

- Semana que vem, no mesmo horário. 

É isto aí!



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