domingo, 15 de fevereiro de 2015

Um vazio existencial no Divã da Pitangueira

Como vai?

Estou confuso, mas parece que estou bem.

Entendo. Mas o que o trás aqui?

Pois é. Vim de carro, mas acho que não quer saber disto. O fato é que tenho depressão.

Sei. E este diagnóstico foi obtido por algum profissional da área?

Sim, por mim. Eu me vi deprimido, li tudo que podia no Google, transformei-me num perito em processos depressivos e deduzi por exclusão que estou com Depressão Atípica. No início suspeitei de que fosse um caso clássico de Depressão Afetivo Sazonal, mas as evidências não deixam dúvidas quanto à primeira escolha.

E o senhor veio até aqui para me contar isto? Tem algo mais que queira esclarecer?

Olha só, puxa vida, como vou explicar...

Comece de algum ponto, daí vamos ver onde vai este conflito.

Então. Vou tentar ser o mais claro possível. Minha esposa é apaixonada comigo. Temos dois filhos, um de 18 e uma de 16 anos. A sobrinha da minha esposa, de 19 anos, mora conosco para estudar. Trabalho numa empresa de consultoria tributária como diretor, tenho uma secretária eficiente e a vida segue.

Parece normal. Tem algo além desta normalidade familiar e laborativa?

Bem, o caso é que conheci uma moça na rede social, ficamos uns meses conversando, até que passamos a nos encontrar. Vivemos um romance tórrido. Ela é tão angelical, tem a idade da sobrinha, mas sabe, é diferente.

Um romance? Você e uma moça de 19 anos? Ela estuda? trabalha? Tem família?

Olha, é uma moça honesta, estuda e trabalha. É artista de cine pornô, mas tudo muito discreto. Eu já fui várias vezes no set de filmagem e achei as ações bastante respeitosas e profissionais.

Uma atriz pornô? Como você se envolveu nesta situação inusitada? 

Não sabia destas qualidades. Depois de uns três meses de relacionamento, ela se abriu e revelou em confiança seus mais ocultos segredos. Como estava apaixonado, achei tudo normal.

Você acha normal um relacionamento extra-conjugal com uma atriz porno?

Se fosse só isto, eu poderia achar, sabe, mas um dia, ao visitá-la no set, ela estava contracenando com a sobrinha da minha esposa, sem saber do nosso vínculo familiar. Foi um misto de emoção e susto, uma situação diferente, mas o estranho ainda estava por vir.

Uma coisa estranha? Tem algo mais estranho além desta situação?

É, tem. A sobrinha justificou o trabalho pela remuneração que ajudava a manter seus estudos e quis compensar aquele processo se entregando a um ménage à trois comigo e a amiga estrela do cine pornô. Foi tudo tão rápido, tão sedutor, que quando dei por conta, já haviam pouco mais de um ano que estávamos vivendo nesta intensidade de amor total.

E o casamento?

Pois é, elas até falaram sobre casar, mas achei que era prematuro partirem para uma relação oficial. Para mim estava bom daquele jeito.

Refiro-me à sua esposa - E o seu casamento?

Ah! Você quer saber do meu casamento. Pois é! A minha esposa. Rapaz, que confusão foi aquela? Nossa!!! Que bagunça que quase ficou minha vida depois que ela quase descobriu ...

Descobriu a sua relação com a atriz pornô e a sobrinha?

Não!!! - isto não. As meninas eram muito discretas. Moças de família, e além disto estavam tão envolvidas em seu trabalho que jamais seriam motivo de preocupação. Ela teve informações distorcidas e infames de que eu era amante da minha secretária. Aí eu achei que daria merda total.

Amante da sua secretária?

É, caramba, para de repetir tudo que eu falo. Tínhamos um caso normal, clássico, há quase dez anos, e tudo ia bem até que contrataram mais uma moça para o escritório, devido ao aumento de serviço. A danada era toda lindinha, gostosinha, cheirosinha, etcterasinha, e aí começou a roçar em mim, entende? Ficava jogando charme, aquelas coisas todas, bilhetes, e-mails, mão boba nas coxas passantes, até que não aguentei e passamos a encontros frugais.

Que caso intrigante. Encontros frugais. Como era isto?

Encontros rápidos, furtivos, em motéis baratos ou em promoção, com muita discrição e pouco agito. Ela era tímida, membro fervorosa de uma igreja cristã, cantava no coral, e não suportava ostentação, entende?

Mas e a sua secretária? E as meninas de fino trato porno? Como ficaram nesta história?

Calma. Uma coisa de cada vez. Deu que a secretária já desconfiava e acabou descobrindo tudo e aí as duas saíram no tapa no meio da sala de reunião - rapaz, foi épico. Sorte que era um sábado à tarde, e só estávamos nós três. Tentei separar, mas a briga foi tão intensa que resolvi esperar para decidir qual salvar. 

E como isto terminou?

A novata saiu vitoriosa, toda arranhada e descabelada, e ao ver minha secretária semi-nua e ofegante no chão, não resisti e mergulhamos num profundo transe de amor total no tapete da sala. Durante dois meses tentou voltar para mim e para o emprego, mas não tinha clima.

Quem tentou voltar?

A velha secretária. Eu não a demiti, dei uma férias para ela maiores do que o convencional. Ela ficou emocionalmente abalada, sabe?

E a secretária nova, a vitoriosa?

Tive que demiti-la na semana seguinte. Ficou se achando a galinha choca do galinheiro, toda cheia de razão. Mas aí, doutor, um dia chego em casa e a novata estava lá, fazendo uma pregação religiosa para minha esposa. Gelei com a cena.

E ...?

Esperei a beata sair. Aguardei o desenlace da visita em silêncio. A esposa começou então a falar da suspeita que tinham no escritório entre eu e a secretária - neguei tudo. Expliquei que as duas eram inimigas, que inclusive foram às vias de fato no escritório, a ponto da secretária ter ido ao pronto-socorro e a novata ter sido demitida e que aquilo não passava de armação por que fui eu quem testemunhou, separou a briga e a demitiu.

E ela?

Acreditou em tudo. A novata não tinha prova de nada. Devia ter um distúrbio, uma paranoia, foram meus argumentos, e de certa forma a patroa aceitou. Aí viajei para umas duas semanas de volúpia total no Caribe, a fim de superar tudo aquilo.

Sério? Você e sua esposa?

Que isto? Eu e minha secretária.

Qual secretária?

A velha, claro, que nem tão velha é assim, tem 31 anos.

Mas e as duas outras, as atrizes?

Então! Assim que voltei, conversamos e elas entenderam minha situação. Saí sem traumas, e diante do vazio que ficou em mim com esta ausência de valores novos a promover meus encantamentos, entrei em depressão.

O senhor quer então preencher este vazio.

Acho que sim, de preferência que seja uma cura rápida. Tem como voltar a ser feliz, doutor?

Bem, o próprio Freud teria dito que a análise até pode resolver os problemas da miséria neurótica, mas ela nada pode fazer contra as misérias da vida como ela é.

Então eu continuarei sofrendo este vazio existencial?

Por outro lado, poderemos prosseguir com uma conduta que o levará a um procedimento da auto-análise, conduzindo-o a desenvolver a coragem de construir um estilo de vida com autocrítica e compromisso de melhorar alguns aspectos da sua própria vida e dos outros, também. 

Ufa, começo a sentir uma pontada de esperança, Fale mais sobre isto, por favor.

Bem, a experiência clínica mostra que, de uma maneira geral, o auto-conhecimento acabará por mostrar-lhe que o melhor caminho para a felicidade é o  altruísmo e a manutenção das amizades. Em vez de ficar obsessivamente buscando uma felicidade para preencher sua vida, deverá sustentar uma alegria de viver no seu próprio eu, e que poderá ser irradiada para também animar o próximo, ou as próximas que trás tão intimamente consigo. Será uma alegria que nascerá da verdade.

Passado algumas sessões, pouco mais de um mês depois:

Pontual como sempre. Vejo que está sorridente e acompanhado. 

Doutor, hoje vim por dois motivos. O primeiro é referente à minha alta, pois estou livre do sofrimento e o segundo refere-se a ela - esta é a secretária novata da qual lhe falei. Desde que reatamos na semana passada, graças ao senhor, eu me vi curado.

Curado? Como assim curado?

Curado no sentido de ter preenchido o vazio existencial que me deprimia, pois o senhor mesmo disse que  o melhor caminho para a felicidade é o  altruísmo e a manutenção das amizades, e ela é minha amiga que estava perdida e agora está de volta ao meu aconchego.

E ...?

Então, doutor, agora é ela que está em conflito, pois quer uma relação mais picante, porém tem medo de perder sua candura religiosa e seu espírito frugal. O senhor dá jeito nisto também?

É isto aí! 

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