terça-feira, 9 de janeiro de 2018

História para aquecer o coração - Não larga nunca mais da minha mão!


Suspirei em profunda dor, ainda tragando a fumaça do cigarro totalmente amassado na noite anterior, quando jurei a ela nunca mais fumar e joguei os três pacotes no lixo. Mas não tive como manter a promessa. Ela nem ao menos foi original - disse que iria na padaria e partiu sem dizer adeus. O lixo só seria recolhido na quinta-feira. Revirei a lata e consegui resgatar apenas um maço que ainda não fora atingido pelas águas da chuva que derretia o mundo em dilúvio há pelo menos sete dias. 

Sentei na cadeira da varanda que dava para o quintal, coloquei os pés cruzados na mureta, lembrei das garrafas de tequila que havia enterrado quando também jurei nunca mais beber, há cerca de duas semanas, mais ou menos. Busquei na confusa memória o local - era entre a jabuticabeira e a cerca viva que nos separara na infância, quando fomos primeiro vizinhos, depois indiferentes, depois amigos, depois namorados, até que na juventude, no baile de formatura da faculdade, fugimos para uma aventura que durou até o dia que eu soube que meus pais faleceram num acidente.  

Voltei para o lar derrotado, e ela ao lado, como porto seguro. Além da cerca viva ainda residiam os seus pais, que se recusaram a reconhece-la como filha depois de fugir com uma pessoa da minha qualidade. Queriam um médico, um advogado, um engenheiro, mas um poeta? Onde vai dar isto, minha, filha? Vão viver de rimas? Filha, ele é um poeta ... - falava a mãe como se aquilo fosse um crime hediondo. Ele escreve versos sem métrica regular, livres, soltos, sem rima entre si, os malditos versos brancos que destroem a candura da poesia. Como ele vai te sustentar? Como vai dar tudo que sonhamos para você, filha? Abandone-o e nós te perdoaremos.

Não só não me abandonou como também foi não foi perdoada até que ... - bem, um mês depois de nos instalarmos na casa dos meus pais, seus pais partiram na madrugada para uma casa que tinham no campo, herança da avó materna, eu acho. Nenhum bilhete, nenhuma carta, nenhum adeus. Aquilo a fez chorar por dias seguidos. Nunca mais seríamos os mesmos, pensei.

Mas ela, ah! - mas ela era um fenômeno de superação. Sabe de uma coisa? Nunca mais vou chorar por eles, pois não morreram, mas promoveram uma ruptura com uma vida que poderia ser feliz de forma definitiva. Rimos e nos amamos por dias sem fim. Foi então que pensamos em filhos para fazer valer nossa união e gerar a perpetualidade do nosso amor. Muitos filhos, ela dizia e sorria - eu quero pelo menos cinco crianças nesta casa e ria descontroladamente.

Vieram crises financeiras, a fome, a depressão, as brigas fúteis e dois abortos espontâneos, outro de forma trágica e uma gravidez ectópica que quase a levou embora. Fim da história. Não aguentou, não suportou, não desejou entender que eu a amava. Não queria que os pais dela a vissem assim, perdida. Partiu em busca do perdão, fugindo de si mesma para se encontrar de outra forma, achava talvez que eu não a merecesse, talvez a sua mãe estivesse certa, talvez a conspiração da natureza fosse um castigo divino, etc, e olha, eu a amava em qualquer natureza de qualquer dimensão de qualquer planeta.

Passou uns seis meses, numa noite quente e abafada, quatro horas da manhã, cochilando na mesma cadeira, senti o perfume que a identificava. Achei que era um sonho. Fiquei um tempo respirando fundo para reter aquele ardor de saudade, até que ao levar a mão no braço da cadeira para me apoiar com o intuito de levantar-me, dei com a mão dela presa à minha e ela ali, ajoelhada, olhos esbugalhados e com sorriso trêmulo. Murmurou com a voz embargada - não larga nunca mais da minha mão! Trouxe-a ao colo, aninhamos num só vulto e choramos até acabar a vontade de chorar. Não precisávamos dizer mais nada. Era hora de fugirmos juntos dali novamente. 


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