quarta-feira, 10 de junho de 2020

O fracasso em constituir uma esperança compartilhada que dê sentido à nação



Dia destes subi na Colina do Bom Senso para avistar o reino vizinho, o outrora alegre e contagiante Pindorama. Lembrei de um texto lido há algum tempo, busquei na rede e estou publicando com a devida autoria e fonte:

Alto lá
Este texto abaixo não é meu
Confesso que copiei e colei

Texto escrito por Contardo Calligaris 

O fracasso em constituir uma esperança compartilhada que dê sentido à nação

As afirmações genéricas sobre o estado de espírito de um povo são facilmente enganosas: ao diagnosticarmos um grupo ao qual pertencemos, psicólogos, antropólogos, jornalistas etc., tendemos a atribuir à coletividade sentimentos que são apenas os nossos.

É por isso que, em tese, não faço diagnósticos coletivos temerários. Só que hoje é um pouco diferente: desde 1985, quando comecei a clinicar no Brasil, não me lembro de ter percebido um desânimo tão difuso e generalizado quanto agora.

Uma pesquisa recente do Datafolha aponta que 72% dos brasileiros enxergam uma piora do cenário econômico, embora só 49% declarem que passaram de fato por um retrocesso. Ou seja, não é necessário sofrer da crise para “sentir” que estamos mal.

Os dois sintomas básicos para diagnosticar um transtorno depressivo maior são o humor deprimido (sentir-se triste e sem esperança) e uma diminuição do interesse em quase todas as atividades. Justamente, uma nova pesquisa (Folha de 12/6) anuncia que 53% dos brasileiros não têm interesse na Copa do Mundo, que logo vai começar.

A esses sintomas, acrescente, segundo sua preferência, sentimento de inutilidade, capacidade diminuída de pensar ou se concentrar, indecisão, pensamentos de morte recorrentes (por bala perdida, assalto ou espera para exames no SUS).

Em 2017, segundo a Organização Mundial da Saúde, o Brasil foi o quinto país mais deprimido do mundo e o campeão em ansiedade. A ansiedade é a grande companheira da depressão: tensão, inquietude, dificuldade de concentração, sensação de perigo iminente.

Quando soube desse ranking, pensei que talvez a gente devesse atribuir o destaque brasileiro a um excesso de diagnósticos e de medicação. Hoje, não estou tão certo disso.

Muitos colegas vão achar essas considerações bizarras, mas é difícil negar a existência de transtornos “sociogênicos”, que refletem as preocupações mais difusas num momento e num lugar específicos – os quais não determinam as patologias dos indivíduos, mas, isso sim, fornecem um pano de fundo coletivo.

O que nos deu esse “pano de fundo”? Numa ordem qualquer: a sensação repetida de um fracasso econômico (acompanhada pela lenda de nossa riqueza “natural”); o fracasso da democracia representativa (persistência das elites tradicionais, corrupção generalizada, primazia das razões eleitoreiras sobre os interesses da comunidade); o fracasso moral vergonhoso (as provas repetidas de que ninguém está disposto a pagar o preço das próprias medidas que lhe parecem certas); o fracasso em proteger um lar seguro e um espaço público; o fracasso, enfim, em constituir uma esperança compartilhada que dê sentido à existência de uma nação.

A “psicologia positiva” norte-americana definia a esperança como a existência simultânea de um objetivo e de um plano definido para alcançá-lo.

O filósofo Richard Rorty (“Philosophy and Social Hope”, Penguin, 1999) definia a esperança como uma narrativa que nos promete um futuro melhor. Ele mostrava que várias narrativas já se comprovaram falsas e devemos aprender a viver sem uma narrativa comum que nos faça esperar —ou seja, cada um deveria inventar sua esperança.

No desespero, não há planos de ação definidos e não há narrativas que prometam um futuro. Mas, no desespero, a esperança não morre: ela continua viva, numa espécie de pensamento mágico.

O deprimido não consegue fazer nada para mudar sua vida, mas não deixa de jogar na Mega-Sena.

O deprimido espera muito, sim, mas sua esperança é abstrata, como os discursos de uma campanha política ruim, que promete e nunca diz quais são os passos necessários para chegar lá.

Se Eric Hobsbawm estivesse vivo e quisesse dedicar um volume à nossa década, acho que escolheria o título “A Era da Farsa” e contaria que o mundo, “naquela época”, tinha sérios problemas e precisava muito de pessoas sérias para resolvê-los (ou, ao menos, para tentar), mas, ironia do destino, ele foi liderado por farsantes.

Enfim, como uma espécie triste de consolação, poderíamos afirmar que os brasileiros estão encontrando uma nova unidade, um traço comum. Já tiveram em comum a primazia do coração sobre a razão que Sérgio Buarque chamou de cordialidade. Agora, quem sabe eles consigam se juntar e encontrar uma comunidade de destino ao redor de uma depressão compartilhada.

Contardo Calligaris: italiano, psicanalista. Deu aula de estudos culturais em NY. Reflete sobre cultura e modernidade.

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