terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Devia ter casado com a Nicoleta

Morávamos na casa que foi do meu avô paterno, no fim da rua do cemitério, a última e era um sobrado imenso, cercada por um quintal que comportava dezenas de árvores e centenas de travessuras. No fundo da casa havia um cômodo independente, que deve ter servido para alojar viajantes no início do século XX, data que meu pai conta ter sido construída a residência da família. Este cômodo, que eu chamava de Templo das Aventuras era meu refúgio predileto para ler tudo que podia, permitido ou proibido, como as revistas de catecismo do Carlos Zéfiro. 

Nasci quando nove irmãos já haviam passado pelo ventre da mamãe. Dos dezesseis até os trinta e quatro anos vieram todos e eu, teimoso ou por culpa do destino, cheguei dez anos depois da última, Maria Francisca. Dos nove, só tive contato mesmo com os três mais novos, pois os outros seis já haviam partido neste mundo de meu Deus, saindo daquela rancho caipira para ganhar a cidade grande. Dos três, só a irmã caçula me dava atenção e carinho, e mamãe também, apesar de que trabalhava muito, fazendo marmita e doces doces para vender, de maneira que não descansava.

Mamãe era divertidíssima, ria de tudo, falava alto e gesticulando. Adorava contar e ouvir casos. Muito gorda e branca, com seios enormes, quando ria, o rosto virava um tomate italiano, tal qual era a sua ascendência, de quem tanto ouvi falar mas não conheci - o nono e a nona. Morava lá em casa a sua irmã, Tia Nicoleta, que era o oposto, o avesso, o antagonismo da personalidade da minha mãe. Sempre mal humorada, magra, pele seca e enrugada, um vestido preto surrado e um olhar duro.

Papai era calado, sério, muito sério. Nunca o peguei sequer sorrindo entre-lábios, ou expressando uma satisfação. Ao invés disto era um homem voltado para o trabalho e para a família num sistema cartesiano literal. Falava baixo, sem demonstrar nenhum sentimento, de raiva ou alegria, ou emoção ou desgosto. Papai não era estranho, era introspectivo, palavra esta que encontrei no Caldas Aulete quando procurava a melhor definição para a palavra hímen, que naquela ocasião acreditava não ter H, que era coisa de homem.

Quando papai ficava alterado, o que era raro, mas geralmente vinculado às escritas dos turcos, mamãe lá do tanque gritava - Amaro, você devia ter casado coma Nicoleta, vai parecer assim lá na lousa quando a aritmética esboça a igualdade dos números. Aí ele chegava da porta e a fuzilava com os olhos e Tia Nicoleta gritava com sua voz esganiçada - Deus me livre deste mal. E mamãe ria de chorar.

Bem, o caso é que papai era guarda-livros, o único da região . Fazia a contabilidade de um número enorme de libaneses, que a gente chamava de turcos só para ver eles corrigirem. Achava interessante ver aqueles homens chegando com vários documentos, conversando baixo, à porta cerrada e sempre saindo aliviados. Todos ficaram ricos e seus descendentes multiplicaram esta riqueza.  

Um dia a filha de um dos turcos deu para me medir com os olhos, eu tinha uns quatorze anos, por aí e ela regulava idade com minha irmã, com uns vinte e cinco anos mais ou menos. A danada era linda, e casada com um velho libanês, que era uma espécie de líder do grupo deles. E por causa disto era quem levava toda semana quase todos os documentos para a escrita. Um dia ela foi saindo do escritório do papai, fez um sinal para mim, e eu a acompanhei até o  "Templo de Aventuras" no fundo da casa. Foi a minha primeira e inesquecível vez, que se repetiu por quase um ano.

De certa feita, assim que ela saiu, papai entrou com uma vara e me bateu tanto que fiquei sem forças até para chorar. Não me disse nada, nunca falou sobre o assunto, mas entendi o recado. Passei a sair de casa nos dias que ela ia entregar os documentos. Cinco anos depois, no velório do papai, vieram poucas pessoas, e praticamente todos os turcos foram. Como eu já estava no ofício, conversaram com minha mãe se eu teria condições de assumir o escritório. Ela me falou sobre o assunto e pedi uma reunião com eles. No dia da reunião, apresentei meus conhecimentos e solicitei que indicassem alguém para me auxiliar com os livros. Como já havia calculado, indicaram a viúva do velho, que faleceu um ano após minha surra. 

Bem, minha vida passou a ter uma rotina interessante - sexo, trabalho, sexo, trabalho, sexo, trabalho e nos intervalos dormia. Nesta época Tia Nicoleta já estava surda, mamãe quase não andava mais e minha irmã já tinha partido junto com o marido e filhos para bem longe. A turca cuidava delas e era uma deusa na cama comigo. 

Dez  anos depois, faleceram no mesmo ano mamãe e Tia Nicoleta. A turca, no ano seguinte teve uma doença estranha e foi definhando, definhando até partir também. Fiquei só naquele sobrado imenso. Meu pai teve dez filhos e agora a casa estava sem herdeiros. No enterro da mamãe só Maria Francisca veio, mesmo assim corrido, pois tinha isto e aquilo, e não dava nem para pernoitar. 

Noite passada acho que sonhei com papai, mas foi tão real que acordei no local do sonho. Estava sentado na cadeira de balanço da varanda, vendo a rua descalça, embolada na poeira vermelha. Cheguei perto, nos olhamos em total silêncio, levantou-se, arrumou o pijama comprido de riscas azuis, calçou as sandálias, veio na minha direção, deu-me um enorme e apertado abraço, que nunca me deu em vida. Olhou nos fundo dos meus olhos e disse - Otavinho, sabe de uma coisa? Eu devia ter casado com a Nicoleta! E deu uma gargalhada espetacular. Rimos de dobrar os joelhos até doer a barriga.

É isto aí!    

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