domingo, 11 de janeiro de 2015

Em algum lugar do passado

Foi deitar achando que não estava bem. Olhou para a esposa ao lado dormindo, despediu dela em silêncio, fechou os olhos e partiu rumo ao desconhecido umbral que divide os mundos. Abriu e fechou os olhos dezenas de vezes, tantas quantas foram as que olhou para o relógio.

Levantou-se em pelo menos quatro ocasiões, saiu pelo corredor até o quarto das crianças, passou pelo banheiro e tornou a deitar. Estava agoniado, mas o sono chegou.

Acordou com alguém batendo insistentemente na porta do quarto escuro. Tropeçou em algo, bateu com a canela numa quina, o rosto foi de encontro a uma parede até perceber uma tênue luminosidade por entre as frestas da porta. Abriu e uma mulatinha de sorriso cínico e voz esganiçada foi logo mandando se apressar. Olhou então para o interior do quarto, e percebeu que era um muquifo em chão batido.

Procurou um local para a ablução matinal e aí deu conta que estava num vestido de estopa, solto, e ao levar a mão na região genital, deparou com o órgão feminino. Deu um grito e desmaiou. Acordou com água no rosto e tapas da mulatinha, ajoelhada sobre seu corpo, chamando-o de "putinha histérica". Olhou para ela, e ao levar as mãos para contê-la, ela caiu sobre seu peito, e em sussurros disse - "eu amo você, por favor, não faça mais isto." Beijaram-se demoradamente sem pudor e sem limites. Ao levantar, olhou de uma outra forma para a moça. Só então descobriu-se todo em corpo de mulher.

Saíram dali com muita pressa, por algum motivo grave, e ao atravessarem a viela fétida e descalça, escorregou no esgoto que escorria pela vala central, rodou o corpo leve no ar e bateu com a cabeça numa enorme pedra no canto da estreita passagem. Acordou numa enfermaria lotada de homens feridos e mutilados, com gritos pavorosos e um cheiro de putrefação nauseante. Lembrava apenas das ordens do líder do seu grupo, quando entraram em Ásculo, sob o comando de Pirro. Tateou o seu corpo e percebeu que estava sem as pernas, e pelo corte, devem ter sido amputadas por gangrena. 

Lembrou de Milena, sua amada esposa, por quem jurou amor eterno no Oráculo de Zeus em Dodona. Milena...Milena... até que não mais chamou por alguém. Mergulhou num túnel densamente iluminado, cilíndrico e aceleradamente rápido. Acordou completamente suado, sem ar, e só acalmou quando deparou com sua esposa ajoelhada sobre seu corpo, com olhar tenso, afagando seus rosto e pedindo calma.

Trocaram um olhar tão apaixonado, tão repleto de amor, que levou suas mãos ao rosto dela e disse - Milena, eu te amo... Só viu o vulto de alguma coisa vindo em sua direção e aí tornou a mergulhar, desta vez num turbilhão de vozes, sons e calor. Enquanto navegava pelas palavras ditas, malditas e bem ditas, virou-se a tempo de ainda ver seu corpo sendo velado pela família e alguns poucos amigos. O jeito era se acomodar e esperar para ver onde aquela condução o levaria desta vez.

É isto aí!

2 comentários:

Gratidão!