Carta destinada à moça mais linda da Vila Pitanguinha, que tinha 15 anos quando fui embora.
Esqueci seu nome, acho que é Clotilde, mas eu te chamo de Flor Menina
Seu endereço ainda me lembro bem: é a terceira casa voltada para o sol poente, depois da Ponte Quebrada, subindo o Córrego do Pato. Na frente tem duas mangueiras centenárias e um pé de abacate.
Prezada Flor Menina,
Como sabe, eu sei que sabe, pois se eu te vejo nos sonhos, tem que haver reciprocidade de mundos, você é parte integrante das minhas noites quando durmo, desde o dia que meus olhos varreram seu corpinho magro, dentro de um vestidinho surrado de algodão de sacaria de açúcar, e tranças feitas com lacinho de chitão.
Ocorreu que nos últimos sonhos você tem se portado de uma maneira bem esquisita. E quanto mais sonho, mais esquisita você fica. Baseado nestes acontecimentos que vejo quando durmo, estou começando a pensar que você perdeu o uso da razão, querida, seus atos sugerem que não mais tem sanidade mental. Age de forma insensata, sem refletir ou ponderar, tal como ouvi falar que só os loucos e dementes o fazem.
Por exemplo, noite destas, num sonho lindíssimo, você agiu de forma desconexa com a realidade, sem refletir ou sequer ponderar, quando ofereci um mói de flor azul, linda, que colhi no caminho da sua casa. Recusou, falou que aquilo era flor de defunto. Pegou a zanzar prá lá e prá cá, batendo uma mão na outra e ali vi logo que tinha ali a doidice de nem sequer aceitar eu deitar o mói de flor azul aos seus pés magrinhos e angulares.
Noutro sonho, você estava exageradamente audaz, vestida de macacão cheio de barro, bota sete léguas, mascando fumo, e andando feito uma maluca pelo milharal procurando por morango silvestre que disse que sonhou que faria você voar. Deu de perceber sua alienação devido aos olhos de peixe morto e sorrisos de uma alegria abobada, sabe?
Trasanteontem eu fui na rua por causa de que tinha agendado uma consulta com a doutora do posto para falar do seu caso. Mas, Flor Menina, a doutora escutou ali, sentada, bateu uns olhos esquisitos na minha face, com características de quem se comporta de modo insano, destes que apresentam indícios de loucura e me encarou de uma maneira tão maluca, que voltei de ré antes mesmo dela abrir a boca e destravar a língua de uma forma com desfaçatez; daquelas que pessoas que não possuem juízo, falam.
Mas deu que cheguei em casa, tomei um sumo de couve com agrião e folha de maracujá com dois dedos de pinga de pitanga, enveredei na rede cuidando de não bater no banquinho com a cachaça e o copo, dei um pito no cachimbo com fumo de rolo curtido aqui mesmo, pigarreei uns catarros clarinho que dava gosto de ver, e fiquei matutando ali, sozinho comigo mesmo, na minha solidão acompanhada da sua ausência. Dei três suspiros dobrados, sendo o último com três paradinhas e proseei com a Vadia, nossa cachorrinha manca:
Vadia, a Flor Menina é doida demais, mas eu gosto muito muito da existência dela dentro de mim. Melhor aceitar assim do que doer sem ter ela por perto. Eu acho, Vadia, eu acho com certeza, que ela vai gostar de saber que eu gosto dela.
É isto aí!
Fonte da Foto: Biblioteca do Congresso Nacional - USA
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