A persistência cultural de Frankenstein (1818), de Mary Shelley, deve-se não apenas à sua relevância no contexto do romantismo inglês, mas também à sua capacidade de dialogar com tradições simbólicas diversas. Entre essas tradições, a mitologia judaica — especialmente o ciclo narrativo do Golem — oferece um campo privilegiado para reflexão comparada. Embora Shelley não tenha declarado qualquer fonte hebraica ou cabalística, as convergências estruturais entre ambos os imaginários justificam investigações interdisciplinares que abrangem literatura, filosofia da técnica e estudos religiosos¹.
1. A criação artificial como categoria cultural
O ponto de contato mais evidente entre Frankenstein e o judaísmo encontra-se na figura da criação artificial. O Golem, difundido sobretudo a partir da tradição associada ao rabino Judah Loew ben Bezalel, em Praga, aparece como ser produzido por fórmulas místicas derivadas do Sefer Yetzirá, texto fundamental da mística judaica antiga². O Golem é uma figura liminar: possui forma humana, mas carece de linguagem plena e autonomia moral³.
A Criatura de Victor Frankenstein compartilha essa liminaridade. Todavia, Shelley seculariza o processo criativo e o desloca para a esfera da ciência experimental do século XIX, gesto que, longe de extinguir a dimensão ética, acaba por radicalizá-la⁴.
2. Responsabilidade e abandono
A literatura rabínica frequentemente destaca a responsabilidade do criador para com aquilo que cria. No caso do Golem, essa responsabilidade envolve controle, vigilância e, quando necessário, desativação⁵. Criar, nessa tradição, implica compromisso contínuo.
Shelley subverte essa lógica. Victor Frankenstein, diferentemente do criador rabínico, abandona sua criatura — gesto que desencadeia a tragédia narrativa e transforma o romance em uma espécie de anti-mito: aquilo que deveria ser evitado se torna, aqui, o motor ético da história⁶.
3. A problemática da nomeação
Outro ponto relevante é a ausência de nome próprio, tanto no Golem quanto na Criatura. No pensamento judaico, nomear desempenha função ontológica: reconhecer, legitimar, situar. A não-nomeação esvazia a identidade. Em Frankenstein, o narrador recorre apenas a epítetos depreciativos — “demônio”, “monstro”, “aborto” —, reforçando a condição de alteridade radical⁷.
Essa dinâmica permite ler o romance como alegoria da marginalização: a criatura abandonada ecoa experiências históricas de exclusão impostas a minorias, incluindo populações judaicas na Europa moderna, ainda que Shelley não tenha construído uma alegoria direta⁸.
4. Convergências iconográficas e recepção moderna
O cinema expressionista alemão do início do século XX reforçou visualmente a aproximação entre as figuras do Golem e de Frankenstein. A estética de Der Golem, wie er in die Welt kam (1920) e a de Frankenstein (1931) consolidou o arquétipo moderno do ser artificial trágico, deslocado e excessivo⁹. A crítica subsequente identificou nessa convergência um campo fértil para leituras interculturais e comparatistas¹⁰.
5. Considerações finais
A relação entre Frankenstein e o judaísmo não deve ser entendida como influência direta, mas como convergência simbólica entre mitos de criação artificial, dilemas éticos da responsabilidade do criador e categorias de alteridade. A figura do Golem ilumina dimensões fundamentais do romance de Shelley, sobretudo a tensão entre ambição criativa e compromisso moral.
Perguntas que, dois séculos depois, permanecem atuais.
Notas de Rodapé
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BALDICK, Chris. In Frankenstein’s Shadow. Oxford: Clarendon Press, 1987.
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IDEL, Moshe. Golem. Albany: SUNY Press, 1990.
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SCHÓLEM, Gershom. On the Kabbalah and Its Symbolism. New York: Schocken Books, 1965.
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MELLOR, Anne K. Mary Shelley: Her Life, Her Fiction, Her Monsters. London: Routledge, 1988.
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DAN, Joseph. Jewish Mysticism and Jewish Ethics. Seattle: University of Washington Press, 1986.
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BOTTING, Fred. Making Monstrous. Manchester: Manchester University Press, 1991.
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GILBERT, Sandra; GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic. New Haven: Yale University Press, 1979.
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LEVENSON, Jon D. Creation and the Persistence of Evil. Princeton: Princeton University Press, 1988.
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EISNER, Lotte. The Haunted Screen. Berkeley: University of California Press, 1969.
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SKAL, David. The Monster Show. New York: Norton, 1993.
Referências (ABNT completo)
BALDICK, Chris. In Frankenstein’s Shadow: Myth, Monstrosity, and Nineteenth-Century Writing. Oxford: Clarendon Press, 1987.
BOTTING, Fred. Making Monstrous: Frankenstein, Criticism, Theory. Manchester: Manchester University Press, 1991.
DAN, Joseph. Jewish Mysticism and Jewish Ethics. Seattle: University of Washington Press, 1986.
EISNER, Lotte. The Haunted Screen: Expressionism in the German Cinema and the Influence of Max Reinhardt. Berkeley: University of California Press, 1969.
GILBERT, Sandra; GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic. New Haven: Yale University Press, 1979.
HARARI, Yuval Noah. Jewish Magic before the Rise of Kabbalah. Leiden: Brill, 2011.
IDEL, Moshe. Golem: Jewish Magical and Mystical Traditions on the Artificial Anthropoid. Albany: State University of New York Press, 1990.
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MELLOR, Anne K. Mary Shelley: Her Life, Her Fiction, Her Monsters. London: Routledge, 1988.
PETERS, Ted. Playing God? Genetic Determinism and Human Freedom. London: Routledge, 2003.
SCHOLEM, Gershom. On the Kabbalah and Its Symbolism. New York: Schocken Books, 1965.
SCHOLEM, Gershom. “The Idea of the Golem.” In: SCHOLEM, Gershom. On Jews and Judaism in Crisis. New York: Schocken Books, 1976. p. 158–204.
SKAL, David J. The Monster Show: A Cultural History of Horror. New York: Norton, 1993.
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