domingo, 13 de setembro de 2015

O analista da Pitangueira e o Rei dos Velórios

Sabe, doutor, eu adorava visitar cemitérios, participar de velórios, e quanto mais dramático, mais intensa era a minha participação. Toda quela carga emocional, as conversas paralelas, os que apenas acenam da porta, os que nunca entram, os que choram contidos, outros aos gritos, outros desmaiam.

Entendo ...

Numa determinada época, já profissional da morte, cheguei a morar próximo ao cemitério. Aí os compromissos foram aumentando. Visitar túmulos bonitos, procurar saber do que morreram estes ou aqueles, aguardar visitantes e conversar sobre o morto. Aquilo era uma benção em minha vida. Eu nasci para isto, doutor.

Acredita nisto?

Sim, claro, sou um predestinado à tanatofilia. Ela é um estar em mim, uma ascendência mórbida e ao mesmo tempo lírica. Eu amo, de paixão, o culto da morte. Mas aí algumas coisas foram acontecendo que começaram a criar obstáculos no meu destino.

Obstáculos? Consegue situá-los?

Bem, Tudo começou quando passei a perceber que as visitas aos túmulos foram diminuindo, e ao mesmo tempo o cemitério passou a ser habitáculo de drogas e prostituição. Até mesmo aqueles que trabalhavam com suas crenças atreladas ao ambiente, foram se esvaindo. As ladainhas sumiram, as carpideiras desapareceram, aí nesta altura vi que os mortos também estavam sós.

Sós? Também? Em que sentido?

Olha, só os grandes funerais passaram a resgatar aquela manifestação de luto eterno. Sabe, os famosos em qualquer coisa passaram a ter um tratamento vip, e o estranho é que ninguém sabe nada deles, a não ser a imagem da sua importância em cada um deles. Desculpe se estou confuso. Mas é que estou me sentindo como os mortos comuns, estou só.

Tudo bem, estou entendendo.

Não, não está entendendo. Puxa vida, olha doutor, ocorre que eu tinha uma companheira de velório, muito discreta, de quem acabei me tornando amante. Imagina isto. Eu, casado, servidor público, ela, casada, do lar. E nós dois em tórrida e discreta paixão nos velórios. Aquilo nos excitava tanto que é inenarrável. Tínhamos catacumbas preferidas, algumas com aquele cheiro inebriante da terra úmida, mas, e agora, doutor ... (mãos na face e pranto intenso) ... e agora ...

Você está perguntando?

Não, agora ela só curte a seção de Saudades Eternas no Youtube. Isto acabou comigo (voz embargada). Ela ... me trocou por um programa de rede. Isto está me matando, doutor, me matando.

Já pensou que esta pode ser a intenção dela? Um grande final como prova do amor infinito?  

Caramba ... não tinha pensado nisto. Agora tudo faz sentido, ela é a mulher da minha vida. Adeus, doutor.

Espera, não saia ainda, não faça nenhuma bobagem.

Bobagem? Vou chamá-la para produzirmos vídeos juntos. Uau! Era isto que faltava para apimentar nossa relação e eu não estava vendo. Valeu, doutor - estou curado! O senhor é bom mesmo!

É isto aí!


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Gratidão!