terça-feira, 1 de setembro de 2015

A vida é um fenômeno empírico

Salatiel Cremistocles estava na praça, proseando com Juca Preto, quando aponta na esquina uma mulher, andando devagar no rumo da Matriz.

Salatiel não consegue evitar o olhar à amada, no auge dos quarenta anos, corpo divino, mas com a face permanentemente triste. Trajava somente longos vestidos pretos, que nunca mais tirou depois de certo fato que ocorreu na juventude.

Foi após este episódio que Salatiel, ainda moço, aproximou-se, fez corte, deu presente, deu rosas, deu renda, deu anel de pedra verde, sonho de valsa e só recebia não.

Virou com os olhos rasos d'água para o amigo, e entre suspiros contou mais uma de muitas vezes a mesma história. - Sabe, Juca, Deleutéria Silvânia teve o amor, o noivado, a vida e a alegria rompidas tudo junto e misturado, ao mesmo tempo e à mesma hora, no mesmo dia, no mesmo local, e claro, todos pela mesma motivação - Artemísio Alcântara, sua alma gêmea.

Fez pânico e desesperou quando soube pela madrinha que ele partira em busca de outra sorte, nos braços de Cleidiomara Fernandes, uma vadia, segundo ela, que fora na juventude sua melhor amiga. Depois de desmaiar, convulsionar, delirar, febricitar, vomitar, engasgar, menstruar, desfalecer, esmorecer, estremecer e outras dezenas de pitis conhecidos e reconhecidos pelo CID das paixões violentas, dormiu o sono das justas, com apenas algumas doses injetáveis de Haloperidol X Prometazina X Clorpromazina, cuja administração foi favorecida pelo uso de uma providencial e angelical camisa de força.

Uns seis dias depois, ainda sob o efeito da leve sedação que permitiu um descanso para todos, procurou uma conhecida mulher na rua de cima, Dona Sinhá, uma rezadeira, benzedeira e parteira que prometia trazer de volta a pessoa amada. Já foi entrando no alpendre chorando, gritando, desesperando e falando sem pausar:

Quero meu amor rápido, Dona Sinhá!
Quero que volte em 24 horas, pelo amor de Deus, Dona Sinhá!
Quero amarrar ele para sempre, por piedade, Dona Sinhá!
Quero trazer ele de volta só prá mim, Dona Sinhá!
Quero reconciliar com ele, quero abraçar nele e nunca mais largar, Dona Sinhá!
Quero meu amor atado nos meus pés, até a eternidade, Dona Sinhá!
Eu tenho urgência de ter meu amor de volta, exijo meu amor de volta, Dona Sinhá!
Eu tenho o direito de tê-lo de volta, Dona Sinhá, pois foi Deus quem me deu este amor.
Quero ele se humilhando para mim, se arrastando e pedindo perdão, Dona Sinhá!

Calma minha filha, calma. Tudo a seu tempo ...

A amarração que a senhora faz é garantida? É definitiva? Quanto custa? Pago agora? Pago o que pedir, mas traz ele agora!

Dona Sinhá olhou nos olhos da moça, matutou sobre a sua angústia, e respondeu:

A moça só tem preocupação em ter seu amor de volta rápido, quer com urgência, quer pra hoje, mas não existe tempo no outro mundo, minha filha. Pode levar dias, talvez meses, e o dinheiro não é mais importante do que ser feliz com a pessoa amada, minha filha. A mocinha prefere ter mais razão do que ser feliz e deixar o moço feliz, não aceita trocar de emoções, e está com a vida negativa. 

Mas Dona Sinhá vai ou não vai trazer ele prá mim? 

É a mocinha quem tem que tomar a decisão certa, fazer os trabalhos que o santo mandar, acreditar, aguardar os resultados, sem ansiedades, pedir com fé, aí, só então, o universo responde. Tem que acreditar que já é seu, acreditar no invisível, se permitir acreditar, ser evidente. Não precisa ter medo nem saber como vai acontecer, você e nem eu mesma sabemos como vai acontecer. Tem que estar sem dúvidas, pois as dúvidas trazem sentimentos de decepção e frustração. Tem certeza de que quer isto mesmo, minha filha?

Dona Sinhá, quer saber? A senhora está é me enrolando, acho que não traz ninguém mesmo. Vai fazer ou não o serviço?

A moça está cega, tem portas que abrem, tem portas que fecham. Se quer abrir uma porta que já foi trancada, tem que estar preparada, por que ao abrir, pode ser que o que está lá não seja o que deseja, minha filha. Olha, o futuro existe de várias formas, mas a gente não pega ele e faz dele presente, não, isto não, pois ele, o futuro, ele está lá.

Que conversa doida é esta, Dona Sinhá? Chama os santos aí e me traz ele, pelo amor de Deus.

Minha filha, volta prá casa e pensa mesmo se é isto que quer fazer. Você não quer saber se ele ficará feliz, você quer ele como um presente aos pés da árvore da sua vida. Não tem como saber se isto será bom ou ruim, e toda ação tem consequências. Volta prá casa e pensa se é esta porta mesmo que quer abrir.

A senhora, Dona Sinhá, é uma fraude. Quer saber? Vá se danar!

Aí, Juca Preto, é que a porca torceu o rabo. Deleutéria Silvânia saiu dali espumando de ódio. Que mulher danada, era só fazer o balangandã dela e pronto, gritava pela ladeira. Deste dia e por dois anos seguidos é que fiz a corte. Deu que meu amigo João também agradou da mocinha e teve mais sorte, mas morreu cedo, dizem que de desgosto por não fazê-la feliz e os dois filhos, quando pegaram idade, bateram asa neste mundo sem porteira, e nunca mais quiseram saber da mãe.

 E lembra do Artemísio e da Cleidiomara? Viveram felizes para sempre, sempre e sempre!

Moral da história? A vida não passa de um fenômeno empírico, Juca Preto - tem que ser testada todo dia, filosofou Salatiel Cremistocles, que não entendia nada da frase, decorada da Folhinha do Sagrado Coração, e repetida toda vez que contava este caso.

Juca estranhou que a viúva, naquela tarde, mudara de caminho, e alertou o amigo. Ao sair da Matriz, pela primeira vez sem o véu, e num passo apressado, Deleutéria veio na direção de Salatiel, sorriu, fez sinal para que a seguisse e sumiram neste mundo. Acho, que foram morar no tal futuro que Dona Sinhá sempre falava, pensou Juca Preto, enquanto cortava a palha para preparar o cigarro. 

É isto aí!

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