terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Música para tocar em velório













Asmodeu França tinha o que se podia chamar de obsessão pela morte. Mas não exatamente da parte religiosa da morte separando corpo aqui e espírito partindo para outras moradas ali. Sua obstinação fitava o velório. Não perdia um sequer na cidade. Era uma figura esperada. Tinha declamações, orações, encomendas, rituais, etc., tudo adquirido com a experiência de anos observando o féretro.

Tomou o trem noturno para  a capital onde chegou amanhecendo o dia. Passou na pensão do seu Teobaldo, conterrâneo e amigo de longa data da família. Explicou o interesse em visitar Agências Funerárias e o amigo ligou para um taxista que iria atendê-lo. Dentro do carro, de estalo, pediu para visitar o cemitério das celebridades e ricos, no que foi prontamente atendido.

Havia um velório de grande empresário regional. Lindo, tecnicamente perfeito, do ponto de vista de Asmodeu. Foi às lágrimas ao ver o esquife lardeado por 6 coroas de flores de orquídeas, com alças de bronze, forro aveludado em tom azul marinho clássico. No lado de fora músicos tocavam uma seleção previamente escolhida pelo falecido e buffet do mais alto nível no salão anexo. 

Quase morreu de tanta felicidade ao ver um enterro exatamente igual ao que desejava para si. Voltou para casa deslumbrado. Anotou detalhes, endereços, contatos, enfim, criou uma condição excepcional para realizar seu desejo de morrer com dignidade. 

Passados alguns anos, adoeceu e a situação foi se agravando até ver que não teria saída, senão viver seu sonho dourado. Pediu à filha a relação dos contatos, e fez as ligações já orçando e encomendando a urna, as flores, o buffet, mas ao contatar a banda, lembrou que nunca havia pensado nas músicas que queria que fosse tocadas no funeral.

Quase morreu de aflição. Como pode ter esquecido as músicas? Esta revolta superou quatro enfartes agudos, duas pontes safena, três acidentes vasculares no cérebro, uma nefrite em cada rim, e por fim uma pancreatite gravíssima. Tudo isto nos dez anos que ficou para escolher as músicas. Queria um Strauss, depois pensava se não seria melhor Wagner, mas aí achava muito violento, migrou pelas óperas clássicas e quando o tempo chegou partiu sem conseguir definir.

Raimundinho, o maior sem caráter do município, que reza a lenda, conheceu biblicamente todas as mulheres da cidade, bem como bebeu, cheirou e se lambuzou de tudo que podia, colocou um potente carro de som na porta do Clube do Salão Literário e Cultural, exclusivo da elite do município e mandou ver o melhor do Calcinha Preta.

Não teve quem se segurou no velório. A cidade dançou até amanhecer o dia, comendo e bebendo do bom e do melhor, sem parar. Na hora de baixar o caixão na sepultura, Rosinha, que segundo as malvadas de plantão, era um caso secreto do falecido, pediu para abrirem a urna. A família protestou ferozmente, os amigos apoiaram a moça e aí a briga deu-se sem fim. Foi pancada para tudo quanto é lado, até que Diógenes de Brito, delegado calça curta, sacou sua cano serrado, deu um tirambaço para cima e aos berros mandou pararem com aquela zona.

Ele mesmo abriu a tampa e cadê o Asmodeu? Dentro da urna lacrada o bilhete - "é ruim, hem!"

É isto aí!


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