domingo, 3 de julho de 2016

O solfejo do professor de piano

Passou na casa de Sinhá Chica, onde tomou benção, passe e água. Desceu a galope a ladeira doas Aflitos, tomou a rua da Farmácia, atravessou em direção ao Beco dos Borges, passou pela estreita viela e entrou por uma porta velha, carcomida e pesada.

Lá dentro estava Delfina, a musa da sua vida, linda, cheia de graça e de consolo. Abraçou, beijou, beijou, beijou e deu-lhe a aula de piano para a qual era contratado pelo seu pai. Ao final do horário já não sabia mais onde estavam as oitavas, nem mesmo os pedais. Delfina tocava-lhe o coração sem sustenidos.

Saiu ofegante, continuou descendo o Beco até atingir a Rua Moleque, de onde avistava a casa azul com ipês amarelos na frente, onde logo logo estaria nos braços de Clotilde, esposa de Tenório, escrivão da guarda municipal. A digníssima senhora era sua aluna de canto, e em todos os cantos da casa já apalpara seus redondos e fartos motivos de canto lírico.

Refeito da atividade, voltou à caminhada, seguiu a passos largos pela Rua do Contra, subiu a Travessa dos Travessos, atravessou a pinguela do Córrego dos Macacos e entrou pela cozinha da residência dos Tevez, cujas filhas gêmeas eram fortes candidatas a participarem de um concerto regional de Bach, graças ao ilustre e dedicado professor e maestro da cidade.

Naquela tarde, enquanto ardiam em completa devoção à arte musical, a mãe, uma das mais distintas damas da sociedade local, surpreendeu aos três em intrigante menage por sob a calda do instrumento de origem alemã, de nome impronunciável. Arrumou-se no que pode e saiu em desvairada correria de retorno ao lar.

No entardecer frio e triste daquele dia, batem à porta. Eram os pais da gêmeas. Tremeu até a última célula do corpo. O homem tinha fama de bravo e historias de tiros por causas menores. Abriu a porta esperando a morte. O entendiado marido cumprimentou-o formalmente, mediu-o de cima a baixo, indagou com os olhos algo à esposa e perguntou se o distinto cavalheiro se incomodaria de dar umas lições particulares em sua casa à esposa, pois as meninas não queriam mais aprender piano e a mãe ficou convencida de que a presença dele na casa poderia melindrar o desejo das filhas.

Consentiu com um leve e trêmulo aceno de cabeça, enquanto três homens desciam um piano do caminhão parado à sua porta. Tamanho foi o desgosto pela rotina, que nunca mais repetiu seus feitos da mocidade. Casou-se com Delfina, manteve um relacionamento fiel e exclusivo com a mãe das gêmeas e foi infeliz para sempre.

É isto aí!



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