Matilde Campilho (Matilde Maria d'Orey de Sousa e Holstein Campilho) (Lisboa, 20 de Dezembro de 1982) é escritora e poetisa portuguesa.
Graduou no curso de Literatura e depois foi para Florença estudar pintura. Nesta cidade passou um ano num atelier a desenhar, tendo feito ilustrações para uma revista de Portugal.
Desde 2010 vive entre o Rio de Janeiro, onde trabalhou como jornalista e redatora, e Lisboa. No período de 2010 a 2013 publicou seus primeiros poemas, em jornais do Rio e de São Paulo, e escreveu seu primeiro livro, Jóquei, lançado em Portugal em 2014.
Matilde foi uma das principais estrelas da Bienal do Livro de São Paulo de 2022 com o livro de prosas Flecha.
Abaixo, ouça a autora declamando e leia seu poema Fevereiro - lindíssimo!
isto é muito sério.
Anda, escuta que isso é sério!
O mundo está tremendamente esquisito.
Há dez anos atrás o Leon me disse
que existe uma rachadura em tudo
e que é assim que a luz entra,
não sei se entendi.
Você percebe alguma coisa
da mistura entre falhas e iluminação?
Aliás, me diga,
você percebe alguma coisa de carpintaria?
Você sabe por que foi que
meteram um boi naquele estábulo
ao invés de um pequeno rinoceronte?
Deve ter tido alguma coisa a ver com a geografia.
Ou com os felizmente
insolucionáveis mistérios
que só podem vir do misticismo asiático.
Um boi é um bicho tão … inexplicável.
Ainda bem!
O amor é um animal tão mutante,
com tantas divisões possíveis.
Lembra daqueles termômetros
que usávamos na boca
quando éramos pequenininhos?
Lembra da queda deles no chão?
Então!
Acho que o amor quando aparece
é em tudo semelhante
à forma física do mercúrio no mundo.
Quando o vidro do termômetro se quebra,
o elemento químico se espalha
e então ele fica se dividindo
pelos salões de todas as festas.
Mercúrio se multiplicando.
Acho que deve ser isso
uma das cinco mil explicações possíveis
para o amor.
Ah é! Eu gosto de você!
A luz entrou torta
por nós a dentro, mas, olha,
eu gosto de você!
A luz do verão passado
quebrou o vidro da melancolia
e agora ela fica se expandindo
pelas ruas todas,
desde aquele outro lado do Sol
até esse tremendo agora.
Hoje ainda faz bastante frio.
As cinzas ainda não aterraram
sobre as cabeças disfarçadas.
Tem gente batucando
suor e cerveja
pelas ruas da nossa cidade sul.
pelas ruas da nossa cidade sul.
E na cidade norte,
há ondas de sete metros
tentando acertar no terceiro olho
dos rapazinhos disfarçados de cowboys.
[suspiro]
O mestre ainda não veio
decretar o começo da abstenção
e ... olha,
a luz ainda está conosco.
a luz ainda está conosco.
Sim,
o mundo está absurdamente esquisito.
Já ninguém confia
nas imposições dos perfeitos.
A esta hora na terra é um tanto carnaval,
um tanto conspiração,
um tanto medo.
Metade fé,
metade folia,
metade desespero.
E, provavelmente,
a esta hora,
uma metade do mundo está vencendo
e a outra metade dormindo.
Há ainda outra metade
limpando as armas,
outra limpando o pó das flores.
Mas, por causa do que me ensinou o místico,
eu acredito que agora exista alguém
profundamente acordado.
Alguém que esteja vivendo
no intervalo tênue
entre o sonho e a agilidade.
Suponho que ele saiba perfeitamente
que este começo de século
será nosso batismo do voo
para nossa persistência no amor.
João molhou a testa de Emanoel.
Os gritos das ruas
molham as testas de nossos corações.
De que lado você está
eu não me importo.
De que garfo você come?
de que copo você bebe?
que posto certo você escolhe?
qual é seu orixá?
seu partido?
sua altura?
de qual de suas cicatrizes você cuida?
que pássaro você prefere?
quem é seu pai?
qual é seu samba?
Pinot noir ou Chardonay?
que protetor você usa?
qual é sua pele?
seu perfume?
qual político?
quantos amores você sonha?
em que Fernando?
em que Ofélia?
em que cinema?
em que bandeira?
em que cabelo você mora?
Qual dos túneis de Copacabana?
Reze para seus santos quando atravessar.
É… é impossível
viver no país de Deus.
Isso eu te dou de barato.
Mas atravessar o gramado de Deus em bicicleta,
isso não é impossível, não.
Escuta, isso é sério.
Andamos crescendo juntos,
distraidamente.
As árvores crescem conosco.
Nossa pele se estende,
nosso entendimento teso, também!
O século cresce conosco.
O amor pelas ventas da cara do mundo,
também!
Quanto a um pra um
entre nós dois,
isso logo se vê.
Não sei nada sobre a paixão,
suspeito que você também não.
Mas começo a entender
que o compasso da fé
está mudando a passos largos.
Dois pra lá e dois pra cá.
Portanto, escute.
Isto é muito sério.
Isto é uma proposta aos trinta anos.
Agora que o mercúrio
assumiu sua posição certa,
vem comigo achar
o meu trono mágico
entre a folhagem.
E, no caminho até lá,
vem dançar comigo, vem!
28 de março de 2017 (uma ano bom para poesia, como todos os outros sempre são!)
ResponderExcluirCaro Paulo, soberano do reino da Pitangueira
A quantidade e a qualidade de ofertas nesta casa é proporcionalmente altíssima! Nem sei o porquê da minha surpresa...
Teve vendedor de picolés que me fez rir muito neste final de tarde de terça cinzenta, teve musa-espiã-diva com suas peripécias na republiqueta das bananas...Odete é uma figura! E, finalmente, Matilde Campilho, fui trabalhando e ouvindo uma, duas, acho que quase uma dezena de vezes...que bom ter vindo aqui. E se a poesia não nos salva, mal também não fará a ninguém ou coisa alguma, afinal, é só poesia... De Matilde e do seu Príncipe no roseiral, eu copio:
"(...)
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registradora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só(...)
Muito obrigada,
Amanda
Minas Gerais, aos 28 dias quase findos deste março triste
ExcluirPrezada contista, poetisa e simpaticíssima Amanda Machado,
Então! Este blog era para ser uma coisa secreta e agora recebe visita da sua envergadura. Fico contente, muito contente mesmo de receber você aqui.
Odete, a musa da Pitangueira, a quem já dediquei 43 crônicas, nasceu de um fracassado projeto que tive de escrever um livro. O livro ficou horrível, sem força literária e com baixa qualidade técnica, então acabei abandonando. Mas Odete era uma personagem secundária, de pequena aparição, ocorre que eu me apaixonei por ela. No livro, ela ficava ligando para seu amado, ela em Brasília, ele em São Paulo, suplicando para ele voltar, isto no início da ditadura, em junho de 1964, numa época em que o telefone era um horror, cuja inoperância fluiu mal até o fim dos anos 1980. Daí ela ficar sempre me pedindo isto no final das crônicas. É a marca registrada dela.
No mais, eu gosto de publicar as coisas que eu acho bonitas. Puxa, os poemas, a voz da Matilde Campilho, puxa vida, mexe lá no fundo d'alma.
Um abraço
Paulo
Olá, alguém sabe me dizer se esse poema está no livro Jóquei, de Matilde Campilho?
ResponderExcluirEstá sim!
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