Sábado, tarde chuvosa e fria de outono com Covid. Um casal de universitários enamora pela rede social. Moram no mesmo bairro, mas a quarentena suspendeu temporariamente a ardência dos corpos juvenis. Entre um ping e um pong, um desejo e um querer, ele lembrou do poema de Camões e postou o primeiro verso, para impressionar no fundo do coração da mocinha:
- Ele escreve:
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
Fonte do poema Amor é fogo que arde sem se ver, de Luís de Camões
- Ela pensa e pergunta:
(Ela resolve aproveitar a oportunidade para tirar uma dúvida de longa data.)
Já disse que amava alguém quando na verdade não sentia nada por ela?
- Ele pensa e responde:
(Ele, entendendo a indireta e perseverando na poesia para mudar o rumo da prosa. Recorreu desta vez à Drummond)
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
Fonte do poema Memória, Carlos Drummond de Andrade
- Ela pensa rápido e pergunta:
(Ela sentiu uma pontada de dúvidas, a resposta dúbia parecia sugerir que ele não esquecera a vaca da ex, e resolveu aprofundar no tema com mais uma pergunta)
O que você faria com o amor da sua vida?
- Ele se sente acuado e responde:
(Ele sentiu o golpe. Ela fez a leitura e quer encurralá-lo nas cordas até dobrar os joelhos. Mas entende que o melhor seria manter a poesia e mudar o rumo da prosa recorrendo ao Pablo Neruda)
Depois de tudo te amarei
como se fosse sempre antes
como se de tanto esperar
sem que te visse nem chegasses
estivesses eternamente
respirando perto de mim.
Fonte do poema Integrações - Pablo Neruda
- Ela se abala e faz outra pergunta:
(Ela sentiu a pancada. Ainda ama aquela vaca, e depois de tudo vá à puta que o pariu. Resolveu fazer mais uma pergunta para liquidar a conversa).
Me diga pelo menos uma coisa que você gostaria de levar em mente sempre, para sempre, até depois do sempre?
- Ele se sente nas cordas e responde:
(E agora? O que fazer? Valei-me São Vinícius de Moraes, me dê um caminho, algo que valorize esta mulher)
Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.
Essa mulher é um mundo! — uma cadela
Talvez… — mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!
Fonte do poema Soneto da Devoção, Vinícius de Moraes
- Ela avalia a situação e resolve fazer uma saída honrosa:
(Puta merda, merda, merda, merda, merda, mas calma, respira, respira, respira, é ruim que aquela vaca vai ter ele de volta, é ruim... por isto, e só por isto vou dar o benefício da dúvida)
Querido, eu vou ter que parar para tomar um banho, está na hora de dar o remédio para a Vovó, tenho que consertar um vaso, guardar as vasilhas do almoço, tenho que pregar um botão, costurar um short, colar a sola da sandalinha amarela, tenho que lavar o cabelo, passar creme no corpo, depilar, não necessariamente nesta ordem e tomar um vinho com mamãe que não bebe, mas me acompanha assim mesmo na conversa)
- Ele suspira e responde sorrindo:
Valeu!!
É isto aí!
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