sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O mantra da destruição


Um dia normal, fazendo coisas normais, ou quase isto, fui comprar algo para casa. Até aí seria mais um daqueles momentos de rotina, onde você descobre que o que ganha ainda não dá para adquirir tudo o que deseja nestes cada vez mais diversificados hipermercados, onde andamos em média uma hora para achar quatro produtos, e olharmos uns duzentos ou mais, desde óculos até geladeiras inteligentes de ultima geração.

Bem, fui para a fila do caixa, recolhido à insignificância dos produtos adquiridos. Já estavam sendo atendidos, um casal gordo e feliz, redondos e apaixonados, em um carrinho lotado de coisas que engordam e à minha frente, na fila ordinária, uma moça de beleza comum, nada excepcional, com poucos artigos de necessidade diária de uma casa. 

Eis que esbarra em mim um carrinho, seguido de desculpas. Ao virar, deparo com uma estonteante beleza feminina, alta, corpo escultural e olhos tristes. Apenas sorri como aceite ao seu pedido, medi sua beleza com dedicada atenção e voltei ao sentido da fila.

A moça da frente, aquela de Beleza Comum (BC), ao ouvir a rápida conversa, virou-se pela curiosidade feminina, olhou para a estonteante moça de Olhos Tristes (OT), e segui-se um diálogo, no qual fui obrigado a testemunhar, por estar exatamente entre as partes, que reproduzo com a máxima fidelidade, abaixo:

BC - Fulana, tudo bem? 
OT - Oi, Fulaninha, nem tinha reparado que era você, estava tão distraída.
BC - Nossa, Fulana, você não muda nada, sempre bonita.
OT - Bondade sua, Fulaninha, mas você está passeando aqui? Não tinha ido embora?
BC - É menina, desde que Beltrano morreu, e já fazem sete anos, fui embora para o Espírito Santo...
OT - Sete anos? Nossa, como passou depressa. Muito triste mesmo. 
BC - É mesmo. Custei para superar o trauma do acidente, mas Deus sabe o que faz. 
OT - E seu filho? Já deve estar um rapazinho.
BC - Ah! É a cara do pai, já tem oito anos. Sabe, ele cobrava muito o pai...
OT - Mas aí você mudou para o Espírito Santo...
BC - Fulana, tive que ir embora, era tudo muito triste. Com a pensão e o seguro comprei uma casinha em Cariacica e levei minha mãe comigo, porque ela também estava sozinha aqui...
OT - É, não deve ter sido fácil perder quem a gente ama...
BC - Mas graças a Deus tudo passou. 
OT - Mas, e aí, voltou...quando foi isto, nunca mais deu notícias.
BC - Tem uns quinze dias que voltei, e agora estou muito feliz.
OT - É mesmo? Está trabalhando aqui? 
BC - Não, nada disto, você lembra do Beto?
OT - Qual Beto?
BC - O Beto, Fulana, aquele que estudou com a gente, que era engraçado, tocava violão...
OT - Ah, sei, o Beto, sei...
BC - Então, no início do ano tive que ir ao centro de Vitória, aí, Fulana, não é que encontrei com ele?
OT - É mesmo? Ele mora lá também?
BC - É, menina, ele tinha mudado para lá tinha umas semanas e estava trabalhando em Tubarão.
OT - Tubarão? Beto? Então foi para Vitória?
BC - É, aí a gente ficou conversando, daí a gente se encontrou outra vez, outra vez, e a vida nos uniu.
OT - Uniu? Vocês casaram?
BC - Ainda não, porque tem a pensão, tenho meu filho e minha mãe que dependem de mim...
OT - O Beto...sei...
BC - Mas aí a companhia chamou ele para cá, e quis que eu viesse, mas eu falei que não dava.
OT - O Beto foi prá Vitória...
BC - Mas aí ele insistiu muito, diz que não voltava sozinho e trouxe eu, mamãe e meu filho...
OT - Então foi isto...
BC - Aí a companhia deu uma casa, e ele está bancando tudo, colocou a gente até no Plano de Saúde.
OT - O Beto...sei...Vitória...
BC - Minha mãe é doida com ele, e meu menino então, parece que é filho dele. Precisa ver...
OT - O Beto...sua mãe...foi prá Vitória...
BC - Vai lá em casa, ele vai gostar de te ver, vou falar com ele. Agora tenho que ir...
OT - Lá em casa...o Beto...gostar de me ver...
BC - Tchau, eu estou morando na Cidade Nobre, na rua Tal, número Tal, apartamento Tal...
OT - O Beto...Cidade Nobre...adeus Fulaninha...

E Fulaninha foi embora, afinal a fila anda. Atrás de mim o silêncio congelante. Em seguida choro contido, em seguida choro com palavras incompreensíveis, em seguida o choro com soluços e o mantra da destruição:

"Como eu fui burra, eu sou uma idiota, como eu fui burra, eu sou uma idiota, como eu fui..." 

Olhei para trás e só havia um carrinho cheio de compras e o vazio que o Beto promoveu naqueles compreensíveis olhos tristes de Fulana.

É isto aí!


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