domingo, 15 de março de 2015

Os anjos e a caxeta do Libório

Ryszard Krasowski
Dia destes estive num hospital visitando um amigo que se acidentou em casa correndo para atender o telefone, enquanto tomava banho. Estava sozinho e achou que não teria problema sair nu, escorregou no porcelanato e não viu mais nada, sendo descoberto na manhã seguinte pela empregada.

Na saída do apartamento do paciente, passei por um homem que achei conhecer. Alto, idoso, ereto e com um olhar muito penetrante. Continuei andando pelo corredor quando lembrei daquela pessoa. Ao voltar para reencontrá-lo, já havia desaparecido.

Será que é ele mesmo? Pensei e refleti - mas é impossível - já se passaram uns trinta anos. Bem, vou explicar: quando era criança, ia sempre nas férias, na roça, onde moravam meus avós. Nada melhor do que o campo para uma criança se sentir no paraíso. Nas sextas-feiras, na varanda do sobrado, meu avô recebia os  amigos de sempre para beber cachaça, comer torresmo e jogar caxeta ou caixeta como dizem mais ao sul. Entre seus amigos, tinha o Libório, divertidíssimo, padrinho do meu pai. Sua esposa já havia falecido, os filhos tinham ganhado a estrada e ele tocava seu sítio dentro das suas limitações pela idade.

Numa destas férias, em janeiro, com muita chuva, o Libório faleceu e fomos lá para a casa dele, do outro lado da encosta. Era uma sexta-feira, e aí os amigos, para homenageá-lo, ficaram jogando caxeta a noite toda, esperando o dia amanhecer para enterrar o falecido no cemitério da vila. A casa dele era pequena, e tinha apenas uma puxada de telhado na frente, em piso batido, com umas pedras próximo à porta. Devia ser de madrugada, e eu ali, aceso, pois nunca tinha visto um homem morto, nem sequer um velório, e muito menos uma chuva torrencial como aquela.

Ficava andando prá e prá cá e ao chegar na porta da cozinha, deparei com um homem encostado na bica, calado, olhando para mim sem estar me vendo. Achei que podia ser um dos vizinhos, apesar de nunca tê-lo visto. Não tive medo nem nada, mas fiquei com muito sono. Nunca mais esqueci seu rosto e na manhã seguinte não o vi no enterro.

Voltei rapidamente ao apartamento e meu amigo tinha acabado de falecer, saí dali e novamente cruzamos o olhar. Desta vez não olhei para trás.

É isto aí!

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