ZADIG OU O DESTINO - Uma história oriental
Voltaire (François-Marie Arouet) foi um dos grandes filósofos do Iluminismo. Dentre as suas qualidades destaca-se a ironia, às vezes gentil, em outras sarcástica e, não poucas vezes, profundamente destrutiva.
Suas obras dão sentido à velha máxima: "Ridendo Castigat Mores" (com o riso castigam-se os costumes).
Zadig não é diferente; ironiza o poder, a organização política, a riqueza, o orgulho as pretensões da burguesia, a riqueza, a inveja e muito mais. Vale hoje como valeu em seu século.
A edição é antiga, mantivemos a pontuação e acentuação originais que os gramáticos resolveram alterar um dia. (Nélson Jahr Garcia)
I. O CAOLHO
No tempo do rei Moabdar havia em Babilônia um jovem chamado Zadig e cuja boa índole se aprimorara pela educação. Embora moço e rico, sabia moderar as paixões, não afetava nada; não pretendia ter sempre razão, e costumava respeitar a fraqueza dos homens. Era de espantar que, com tanto espírito, jamais procurasse meter a ridículo esses diálogos tão vagos, tão incoerentes, tão irrequietos, essas temerárias maledicências, esses juízos ignaros, essas grosseiras chocarrices, esse vão palavrório, a que se chamava conversação em Babilônia.
Aprendera, no primeiro livro de Zoroastro, que o amor-próprio é um balão cheio de vento, de onde brotam tempestades quando se lhes dá uma alfinetada. Não se vangloriava, principalmente, de desprezar as mulheres e subjugá-las. Era generoso; não se arreceava de prestar serviços a ingratos, conforme este grande preceito de Zoroastro:
"Quando comeres, dá de comer aos cães, ainda que te mordam".
Era o mais sábio possível, pois procurava viver com os sábios. Instruído na ciência dos antigos caldeus, não ignorava os princípios físicos da natureza, tais como se conheciam então e, quanto à metafísica, sabia dessa matéria o que sempre se soube em todas as épocas, isto é, pouquíssima coisa.
Estava firmemente convicto de que o ano se compunha de trezentos e sessenta e cinco dias e um quarto, mau grado a nova filosofia do seu tempo, e de que o sol ficava no centro do mundo; e quando os principais magos, com insultuosa arrogância, lhe diziam que demonstrava, assim, maus sentimentos e que só um inimigo do Estado poderia acreditar que o sol girasse sobre si mesmo e o ano tivesse doze meses - Zadig calava sem cólera e sem desprezo.
Com grandes riquezas, e por conseguinte com amigos, de boa saúde, agradável aparência, espírito justo e moderado, e um coração sincero e nobre, julgou que podia ser feliz. Ia desposar Semira, cujo nascimento e fortuna a tornavam o primeiro partido de Babilônia. Dedicava-lhe um firme e virtuoso afeto e Semira o amava com paixão.
Não tardava o feliz momento que os ia unir, quando, passeando os dois pelas proximidades de uma das portas de Babilônia, viram encaminhar-se a seu encontro alguns homens armados de sabres e flechas. Eram os satélites do jovem Orcan, sobrinho de um ministro, e a quem os cortesãos do tio haviam feito acreditar que tudo lhe era permitido.
Não tinha nenhuma das graças ou virtudes de Zadig; mas, julgando valer muito mais, exasperava-se por não ser o predileto. Tal ciúme, que só a vaidade inspirava, o convencera de que amava loucamente a Semira. E queria raptá-la.
Os asseclas lançaram-se a ela e, na sua brutalidade, chegaram a feri-la, derramando o sangue daquela criatura cuja vista seria capaz de enternecer os tigres do monte Imaús. Ela feria os céus com seus lamentos.
"Ó meu caro espôso! - bradava. - Arrancam-me àquele a quem adoro!"
Não se preocupava com o próprio perigo; pensava apenas no seu Zadig, o qual, ao mesmo tempo, a defendia com todas as fôrças que empresta a coragem e o amor. Somente com o auxílio de dois escravos, pôs os homens em fuga, carregando-a, desfalecida e ensangüentada, para a casa de seus pais. Logo que Semira voltou a si, deu com os olhos no seu salvador, e disse-lhe:
"Ó Zadig! antes eu te amava como a meu espôso; mas agora amo-te como àquele a quem devo a honra e a vida".
Nunca houve coração mais comovido que o de Semira. Nunca uns lábios encantadores exprimiram mais tocantes sentimentos, com essas ardentes palavras inspiradas na maior gratidão e nos transportes do justificado amor. Seus ferimentos eram leves; ficou logo boa.
Zadig fôra atingido mais gravemente; uma flechada perto de um ôlho produzira-lhe profundo ferimento. Semira só pedia aos deuses a cura de seu amado. Seus olhos, noite e dia, estavam banhados de lágrimas: esperava o momento em que os de Zadig pudessem gozar de seus olhares; mas um abscesso, que se formou na vista afetada, deu causa às maiores apreensões. Mandaram chamar em Mênfis o grande médico Hermes, que chegou com numeroso séquito, visitou o enfermo, e declarou que êste perderia a vista; predisse até o dia e hora em que deveria suceder o nefasto acidente.
"Se fosse o ôlho direito - disse êle - eu poderia curá-lo; mas as feridas na vista esquerda, são incuráveis".
Toda Babilônia, lamentando o destino de Zadig, admirou a profundeza da ciência de Hermes.
Dois dias depois, o abscesso resolveu-se por si mesmo; Zadig ficou completamente são. Hermes escreveu então um livro, em que lhe provou que não deveria ter sarado. Zadig não o leu; mas, logo que pôde sair, aprestou-se para visitar aquela em que fazia consistir toda a sua felicidade e só pela qual desejava conservar os dois olhos. Fazia três dias que Semira se achava no campo. Soube, em caminho, que essa bela dama, depois de declarar, abertamente a sua invencível aversão aos caolhos, desposara Orcan naquela mesma noite.
A essa nova, Zadig perdeu os sentidos; a dor o levou à beira do túmulo; por muito tempo esteve doente; mas enfim a razão venceu o sofrimento, e a própria atrocidade do que experimentava serviu para o consolar.
Já que sofri - disse êle - tão cruel capricho de uma moça da Côrte, devo agora procurar uma burguesa.
Escolheu Azora, a mais recatada donzela de família da cidade; desposou-a, e viveu com ela um mês os encantos da mais doce união. Apenas lhe notava certa leviandade e demasiado pendor para achar que eram exatamente os jovens mais bonitos que tinham mais espírito e virtudes.
(amanhã a segunda parte - O Nariz)
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