sábado, 8 de novembro de 2014

As cebolas, a balzaquiana e o analista da Pitangueira

Júlia Patrícia? 

- Sim, sou eu.

Por favor, entre.

- Quero não, senhor, muito obrigada.


Mas o consultório é aqui dentro. Pode entrar.

- Mas só nós dois, sem enfermeira, secretária, nada?

Sim, só nós dois.

- Mas quem garante que não vai me agarrar, me alisar, até forçar um beijo em mim?

Não existem garantias de nada nesta vida, senhora, mas afirmo que atitudes deste porte não são minha conduta primária, nem sequer uma conduta profissional digna.

- Atitudes? Chama uma possibilidade de sedução de "atitudes"? O senhor me acha feia? Pois saiba que por onde passo sempre tenho a sensação que estou nua e todos os homens me olham. O senhor não me vê nua?

Eu não estou aqui apenas para vê-la, mas principalmente escutá-la, senhora.

- Não? Tem certeza que não vai querer ver minhas coxinhas grossas, minhas micro-varizes, nada? Então não vejo por quê não podemos ficar aqui mesmo.

Tenho certeza. Por mim tudo bem caso realmente prefira que conversemos aqui na recepção.

- Conversar? Só isto? Como assim?

Bem, esta é uma clínica terapêutica de análise, e aqui as pessoas conversam.

- E depois?

Não há depois, só o agora.

- Mas não tem mais nada? Um flerte, um olhar dúbio? Uma mordida nos lábios? Verificar as marcas de vacina? 

Não tem mais nada além da expectativa de vê-la curada da dor que a incomoda.

- Curada? O senhor é médico de que?

Eu não sou médico, senhora, sou analista formado e em contínua informação pela Real Academia dos Analistas da Pitangueira.

- Então não vou tirar a roupa, nem ficar nua e o senhor não vai examinar minhas particularidades mais íntimas? O senhor não vai nem ao menos tentar fazer alguma coisa tangível comigo? Olha só, tomei banho, fui no salão em pacote completo que significou fazer cabelo, pés, mãos e depilação. Comprei uma roupinha nova, e até esta sandália nunca usei até hoje e tudo isto foi em vão? 

Sim e não, senhora, com convicção não examinarei as suas particularidades físicas, mas com certeza transitaremos por aqueles sofrimentos que atormentam sua mente, seus pensamentos, seus sonhos, seus desejos, suas frustrações e sua alma.

- Nem quer mesmo me ver peladinha? Eu sou tão bonitinha. Nem vai bater um aparelho, nem prescrever um medicamentozinho básico de listinha preta?

Exatamente. Eu sou um profissional da escuta, e tanto o sintoma como a cura estarão fundamentados sobre uma avaliação das percepções da senhora, e para isso os critérios de cura na análise aqui realizada dependerão da sua palavra. E meu principal sentimento é desejar o seu bem, pois a lógica do desejo de curar tem como premissa o conhecer, qual é o bem de um para o outro, no nosso caso - entre eu e a senhora.

- O senhor é espírita, budista, esotérico ou algo parecido?

Não senhora, mas mesmo se fosse, com certeza, isto não influenciaria minha conduta.

- Dá atestado?

Não, senhora.

- Faz encaminhamento para internação?

Não, senhora.

- Nem uma apalpada?

Nenhuma, senhora.

- E eu vou ter que ficar te contando tudo, tudo, tudo, de uma vez só?

Não necessariamente, iremos por etapas, como descascar cebolas, entende?

- Cebolas? Olha, eu detesto cebolas. Acho que vou embora.

Se é isto que deseja, tudo bem. Semana que vem posso agendar no mesmo horário?

- Pode, mas sem cebolas, pode ser? E, a propósito, o senhor é homo ou hetero? Solteiro ou comprometido?

Não vejo o por que da sua curiosidade, mas sou hetero e solteiro.

- Hummmm... semana que vem será que você vai poder me dar uma apalpadinha?

É isto aí!




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