http://informacaoincorrecta.blogspot.com.br/2014/03/banco-da-inglaterra-toda-verdade-nao.html
Assunto: bancos e dinheiro. Um artigo
fantástico. Que, enquanto tal, passou absolutamente (e não casualmente)
despercebido.
Tudo nasce dum relatório do Banco da Inglaterra, Money creation in the modern economy ("A criação do dinheiro
na economia moderna"). O The Guardian pegou nas 14 páginas do estudo e
explicou de forma simples o que isso significa.
Nada daquilo que segue é novidade para os
leitores deste blog. Mas atenção: este é o The Guardian cuja versão online, só
para ter uma ideia, é a terceira mais lida do mundo (9 milhões de visitas
diárias).
Vamos ler:
A
verdade desvendada: o dinheiro é apenas uma promessa de pagamento, e os bancos
aproveitam.
Na década de 1930, Henry Ford supostamente observou que era uma coisa boa que a maioria dos americanos não soubesse como
o sistema bancário realmente funcionava, porque se o soubessem "haveria
uma revolução antes de amanhã de manhã".
Na semana passada, algo notável aconteceu. O
Banco da Inglaterra falou. Num artigo chamado "A criação do dinheiro na
economia moderna", co-autoria de três economistas da Direção de Análise
Monetária do Banco, declara abertamente que as ideias mais comuns de como
funciona o banco estão simplesmente erradas, e que os as posições populistas,
heterodoxas, mais normalmente associadas a grupos como Occupy Wall Street estão
corretas. Ao fazê-lo, o Banco efetivamente atira toda a base teórica da austeridade
para fora da janela.
Para ter uma noção de quanto radical seja a
posição do Banco, considerarmos o ponto de vista convencional, que continua a
ser a base de todo o debate sobre a política pública. As pessoas colocam o
dinheiro delas nos bancos. Os bancos emprestam esse dinheiro com juros (aos
consumidores, ou aos empresários dispostos a investir). É verdade, o sistema da
reserva fraccionária não permite que os bancos emprestem muito mais do que
mantêm em reserva, e se as poupanças não forem suficientes, os bancos privados
podem procurar empréstimos do banco central.
O banco central pode imprimir tanto dinheiro
quanto desejar. Mas também tem o cuidado de não imprimir muito. Na verdade, é
dito com frequência que é por isso que existem os bancos centrais
independentes. Se os governos pudessem imprimir dinheiro, certamente
imprimiriam demais e a inflação resultante atiraria a economia para o caos.
Instituições como o Banco da Inglaterra ou a Federal Reserve foram criadas para
regular cuidadosamente a oferta de dinheiro para evitar a inflação. É por isso
que estão proibidos de financiar diretamente o governo, por exemplo, através
da compra de Títulos do Estado, mas financiam a atividade econômica privada
que o governo simplesmente taxa.
É esse conceito que permite continuar a falar
de dinheiro como se fosse um recurso limitado, tal como a bauxita ou o
petróleo, e dizer "não há dinheiro suficiente" para financiar
programas sociais, falar da imoralidade da dívida pública ou da despesa
pública.
O que o Banco da Inglaterra admitiu esta semana
é que nada disso é verdade. Para citar um dos seus próprios resumos iniciais:
"Ao invés de receber os depósitos das famílias que poupam e, em seguida,
empresta-los, os empréstimos bancários criam depósitos" [...] "Em
tempos normais, o banco central não fixa a quantidade de dinheiro em
circulação".
Em outras palavras, tudo o que sabemos não está
apenas errado, é o contrário. Quando os bancos fazem empréstimos, criam
dinheiro. Isso ocorre porque o dinheiro é realmente apenas uma promessa de
pagamento. O papel do banco central é presidir uma ordem jurídica que concede
efectivamente aos bancos o direito exclusivo de criar notas promissórias,
aquelas que o governo vai reconhecer com curso legal e aceitá-las no pagamento
de impostos. Não há realmente nenhum limite ao quanto os bancos poderiam criar,
desde que possam encontrar alguém disposto a contrair um empréstimo.
Nunca ficarão sem dinheiro, pela simples razão
de que os que contraem empréstimos, de modo geral, não guardam o dinheiro
debaixo do colchão, assim, em última análise, todo o dinheiro dos empréstimos
bancários vai acabar de volta em algum banco. Assim, para o sistema bancário no
complexo, cada empréstimo efetuado só se torna um outro depósito. Além de
mais, na medida em que os bancos precisam de adquirir fundos do banco central,
podem pedir emprestado tanto dinheiro quanto gostam, tudo o que é feito é
definir uma taxa de juros, o custo do dinheiro, e não a sua quantidade. Desde o
início da recessão, os bancos centrais dos EUA e do Reino Unido reduziram esse
custo a quase nada. Na verdade, com o "Quantitative Easing"
efetivamente bombearam o máximo de dinheiro possível nos bancos, sem produzir
quaisquer efeitos inflacionários.
O que isto significa é que o limite real da
quantidade de dinheiro em circulação não é o quanto o banco central está
disposto a emprestar, mas quanto o governo, as empresas e os cidadãos comuns
estão dispostos a pedir em empréstimo. Os gastos do governo são o principal
motor de tudo isto (e o relatório admite, ao lê-lo com cuidado, que o banco
central financia o governo). Então, os gastos públicos não limitam o
investimento privado. É exatamente o oposto.
Porque o Banco da Inglaterra de repente admite
tudo isso? Bom, uma das razões é porque é obviamente verdadeiro. O trabalho do
Banco é analisar o sistema e, ultimamente, o sistema não tem funcionado
particularmente bem. É possível que tenha decidido que a manutenção da
fantasiosa versão da economia, que se tem mostrado tão conveniente para os ricos,
é simplesmente um luxo que não é possível pagar.
Mas, politicamente, está a assumir um risco
enorme. Basta considerar o que poderia acontecer se os detentores das hipotecas
percebessem que o dinheiro emprestado pelo banco não é, na verdade, as
poupanças duma vida de alguns reformados, mas algo que o banco só tem criado
por meio da varinha mágica que nós, o público, lhe demos.
Historicamente, o Banco da Inglaterra tende a
ser um termômetro, demarcando posições radicais que, afinal, tornam-se novas
ortodoxias. Se isso é o que está a acontecer aqui, podemos em breve estar numa
posição para saber se Henry Ford estava certo.
Como o Leitor terá percebido, este é um
daqueles artigos que devem ser imprimidos, emoldurados e pendurados perto da mesa de cabaceira.
Porque aqui está toda a mentira na qual
vivemos: o nosso tornou-se um sistema que existe para alimentar os bancos. A
compra duma casa, dum carro, o cartão de crédito, de dívida: tudo permite que o
banco crie mais dinheiro a partir do nada, dinheiro que será outra vez
emprestado, criando juros e lucro para o banco, num círculo que parece não ter
limites.
Deveria haver por aqui um pouco de satisfação
por parte de quem escreve: quanto afirmado pelo The Guardian (que fez o resumo)
e pelo Banco da Inglaterra (que publicou o relatório) é exatamente quanto repetido
nestas páginas ao longo dos últimos três anos e meio. Mas, em vez de
satisfação, há amargura. E perceber a razão é simples.
Este relatório apareceu na metade deste mês,
enquanto o artigo do The Guardian é da semana passada. O que aconteceu desde
então?
Viram especialistas na televisão discutindo
acerca do assunto? Reportagens? Aprofundamentos? Artigos nos jornais nacionais,
tão solícitos em traduzir as últimas novidades quando estas estiverem
relacionadas com o último bebé da casa real?
Não houve nada. O que é fantasticamente
deprimente: um banco (e não um banco qualquer) afirma que somos burlados,
todos, indistintamente, repetidamente, e o nada absoluto é a resposta.
"Porque o Banco da Inglaterra de repente
admite tudo isso?" pergunta o jornalista.
A minha resposta é: porque sabe que é verdade e
que não há nenhum risco em revela-la. Não vai haver manifestações de protestos,
nenhuma questão levantada nos vários parlamentos nacionais, nenhum Leitor
escandalizado que escreve ao redator do diário local.
Não vai haver nada.
Se o Banco da Inglaterra tivesse escrito que
José Mourinho (o português treinador de Chelsea) é um parvo, em Portugal teria
explodido uma meia revolução. Pelo contrário, o Banco afirma que somos
constantemente enganados e a nossa indignação consiste em ficar preocupados com
um avião desaparecido do outro lado do planeta.
"Historicamente," conclui o
jornalista, "o Banco da Inglaterra tende a ser um termômetro, demarcando
posições radicais que, afinal, tornam-se novas ortodoxias".
Esta é uma observação que temos de ter em
conta. O discurso arrisca ser demasiado comprido, mas não podemos esquecer a
quem pertence o Banco da Inglaterra (e não, não é da Rainha...). Um relatório
como este não é algo que inocentemente foi publicado num anônimo dia de Março:
porque, na verdade, as mesmas coisas poderiam ter sido escritas há um, cinco ou
dez anos atrás. Se apareceu agora, é porque existe um motivo.
Qual? Mudanças no horizonte.
Nenhuma revolução como preconizado por Henry
Ford. Mas alguém decidiu ter chegado o tempo duma mudança. Que será lenta,
pouco visível e que não sabemos até que ponto poderá trazer algo de bom. Mas o
relatório do Banco da Inglaterra é o apito inicial.
Ipse dixit.
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