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Pietà - Käthe Kollwitz - Berlin,
Unter den Linden, Neue Wache
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Copiei e colei
Autora - Luciana Duarte
Luciana Duarte conta aqui uma história real - a sua história. Eu a conheço há muitos anos e sempre que leio este texto, no contexto em que se deu a dor, cresço. Este episódio foi há algum tempo. Depois ela teve uma filha lindíssima, igual a ela mesma, que curte, abraça, beija, e ama como devem ser amadas as crianças. É um registro anterior a esta nova vida. É uma aula. É uma lição de força e fé. Vou parar de escrever para que você possa ler também:
Já fiz parte do grande número de famílias que moram na outra
margem deste rio, belo e misterioso, que é o trilho que percorremos neste
mundo. São pais, mães e filhos, que tem a felicidade de poderem se abraçar
todos os dias, de partilharem suas emoções e sonhos. Naquele tempo, eu
vivia com a tranqüilidade de uma pessoa adulta, pouco dada ao pessimismo e
possuidora da maturidade própria para enfrentar e ultrapassar os obstáculos que
apareciam pelo caminho.
Quando ouvia falar
de pais a quem a morte havia roubado um filho, eu sentia um grande pesar,
ficava tristemente impressionada e tornava-me solidária com a sua dor. Ao meu
jeito, tentava lhes levar algum conforto. Era sensível à sua mágoa, era amiga,
enfim, acreditava que compreendia e conseguia consolar. Mas, depois de algum
tempo, voltava à normalidade dos meus dias, às solicitações que a minha vida me
impunha e, mesmo sem perceber, ia aos poucos ficando alheia da tragédia desses
pais.
Talvez pensando que respeitava o silêncio da sua dor ou achando que o
tempo, ao passar, poderia fazer mais por eles do que eu. Pressentia até que não
queriam ser perturbados e que impunham, mesmo, um afastamento. Mas chegou o dia em
que a minha vida mudou.
O MEU filho morreu.
Passei, então, para
este Lado. Para a margem do Rio onde vive uma multidão de pais e mães, feridos,
destroçados, com corações pra sempre mutilados. Casas onde há um lugar vazio,
onde se chora a partida, sem retorno, de um filho querido. Inconsolável, achava
que nada mais poderia me aliviar. Sentia que muitas pessoas se afastavam,
fartas das minhas lágrimas e do meu sofrimento. As palavras que me eram
dirigidas me feriam ainda mais, não tinham qualquer sentido e não conseguiam me
consolar.
Cansada de sofrer,
comecei por construir barreiras protetoras que me defendessem. Não queria mais
sofrimento, não queria mais ser magoada e sabia que era difícil que alguém
entendesse a luta que se travava no meu íntimo, no meu coração e na minha alma.
A morte do meu filho
projetou-me para um poço escuro e tornei-me distante, inacessível, fechada para
o mundo. Achava que amigos, conhecidos, colegas e até alguns familiares, se
distanciavam de mim. Não falavam do meu filho, e percebia que havia um certo
embaraço quando nos encontrávamos. A cruz era minha e
eu via os dias a amanhecer, uns atrás dos outros, sem que o meu tormento se
atenuasse. Dias, semanas, meses passavam e ninguém me compreendia.
Mas algo foi se
operando em mim e se ajeitando aos poucos em meu coração. Comecei a aceitar a
minha perda e assim dar espaço a mim mesma para chorar e me libertar da culpa,
da revolta e da angústia que me sufocava. Repensei a minha vida e percebi que a
análise que passei a fazer da morte - sobretudo da morte de um filho - era
bem diferente daquela que eu teria feito quando vivia na Outra Margem do Rio,
quando desconhecia totalmente a profundidade e dimensão desta dor. Compreendi que só
quando uma parte de nós morre, é que nos sentimos almas gêmeas de outros pais a
quem aconteceu o mesmo.
Antes, eu também não
tinha capacidade para compreender e ficar ao lado, infinitamente, daqueles a
quem a morte tinha mutilado. Hoje, já vejo com
clareza que o abandono que senti por parte de pessoas que se movimentavam no
meu mundo, só teve como causa o mistério que a morte encerra e o quanto é
doloroso falar dela. E, quando se trata de um filho, apenas quem está muito
chegado a nós ou alguém que já entrou na mesma estrada de luto, pode nos compreender
verdadeiramente. Isto é humano. Hoje entendo... hoje compreendo que não era
insensibilidade das pessoas...
Eu, que vivo hoje
deste Lado, não posso me esquecer que já estive antes na Outra Margem. E como
agi naquele tempo com os Outros a quem tinha morrido um filho? Talvez da mesma
forma que hoje agem comigo. Agora eu sei qual o
modo como poderia ter sido ajudada. Quais as palavras que não queria ter ouvido
e como desejava que me deixassem falar desse meu ser amado, que a morte tão
cedo ceifou. Queria,
desesperadamente, que me escutassem. Por isso, hoje, eu
sei como chegar aos que vivem tranquilamente na Outra Margem.
Assim, não me sinto
magoada ainda mais... Se eles não sabem como se dirigir a mim, se não sabem as
palavras certas, se não entendem meu comportamento... lembro-me que eu, um dia,
também já estive do Lado de Lá... e também desconhecia a magnitude desta dor.
É isto aí!
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