Receita (Nicolas Behr)
Nicolas Behr (Cuiabá, 1958) é um poeta brasileiro, geralmente associado à Geração mimeógrafo e à Poesia Marginal. (Wikipédia)
2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos beatles
Modo de preparar
dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração
leve a mistura ao fogo
adicionando dois conflitos de gerações
às esperanças perdidas
corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os sonhos
eróticos mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver
parte do sangue pode ser substituído
por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões
Sobre este poema, escreveu Welly:
Publicado com selo independente pelo próprio autor em um dos seus muitos livretos de poesia marginal nos anos 70, Receitas surge como uma provocação à geração que coexistia com a ditadura militar, vivendo um contexto social precário em que a liberdade pessoal era ameaçada caso ela não estivesse nos moldes esperados por uma classe conservadora dominante. E ainda, indo além deste período, observa-se que mesmo com o passar dos anos o poema continua atual, demarcando bem através de sua proposta provocativa em forma de receita, o quanto o homem pode ser um produto social de fácil preparo, se tivermos os ingredientes certos.
Sua estrutura funciona como uma extensão do que é dito, e sem ela talvez o poema não funcionasse tão bem. O que acontece, é que uma receita é bastante fácil de se escrever, já que para esse tipo de gênero existe uma fórmula predeterminada, assim Nicolas além de sustentar sua crítica, estabelece uma relação estilística irreverente e sarcástica, por ser esta forma tão ordinária. De início, os ingredientes e em seguida o modo de preparo.
Temos como os ingredientes um apanhado de situações que são, em uma ótica social, efeitos colaterais de uma sociedade problemática, negligente e superficial. Sendo uma ótima combinação de fatores para o resultado do que somos, em um tempo em que conflitos mais relações pessoais e interpessoais são questões afloradas. Já no modo de preparo, vemos os ingredientes sendo combinados um ao outro e ganhando não apenas forma, mas um sentido abrangente quanto a interpretações. Os sonhos eróticos se dissolvem no sangue quente, gelando o coração, enquanto aos conflitos de gerações são adicionadas algumas esperanças perdidas, e enfim como toque final as canções dos Beatles, repetindo o primeiro passo, mas dessa vez dissolvendo tudo numa temperatura maior. A isso ele ainda acrescenta '’Parte do sangue pode ser substituído por suco de groselha, mas os resultados não serão os mesmos’’. Em sua concepção, este homem é um apanhado de coisas que o delimitam a uma receita. Tanto os conflitos quanto as músicas dos Beatles são elementos que o moldam.
Podemos observar que o principal alvo do eu lírico de Nicolas Behr, é chamar a atenção do homem na sociedade para si mesmo, propondo com um certo tom de ironia uma crítica ao pensamento de que há fórmulas predeterminadas para tudo, inclusive para o poeta, como podemos observar na última parte, quando ele completa com uma recomendação '’sirva o poema simples, ou com ilusões’’.
A poesia não nasce a não ser que seja autenticamente concebida, da mesma forma o homem/poeta não existe além de suas ideias independentes, quando há uma sincera devoção para si mesmo e para com o seu contexto social, sem limitação ideológica ou injustiças. Podemos tratar disso de forma verdadeira, mesmo que simples, ou acrescentar algumas ilusões e esperar que elas amenizem algo.
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