Bem, doutor, ele não fala nada mais comigo já tem uns trinta dias, além disto, deu de me insultar. Qualquer coisa, grita - sua gorda. Eu não posso dar um suspiro, que lá vem - para com isto, sua gorda, isto é coisa de gorda. Quando eu fico suada um pouco na roupa - nossa, como uma gorda pode suar tanto. Qualquer coisa que faço, ele vem aos berros, vociferando - sua gorda.
E sempre foi assim?
Não, no princípio ele me achava linda, mandava flores, me chamava de meu amor, me beijava um beijo molhado, ardente, mordido e escandaloso, me abraçava demoradamente. Eu era sua flor.
E como as coisas foram caminhando?
Não caminhavam, nós flutuávamos. Eramos dois amantes despudorados, sem limite. Eu era dele e ele era meu.
Entendo.
Não, não entende. Nunca vi, ouvi, li, soube ou assisti uma relação assim. Mas não o culpo por não entender, não há como saber a dose da volúpia que nos envolvia. Não sei explicar.
Para você era uma relação normal?
Não, nada de normal, ele me sodomizava, me prendia, me batia, puxava um ou outro fio dos meus cabelos, lentamente, de qualquer região do corpo. Nossa, eu era uma pedra bruta a ser lapidada - ele dizia, daí vinha com todos os objetos para criar arestas passionais, como se referia aos seus caprichos.
Mas, e você?
O que tem eu?
Era obrigada? Era ameaçada?
Nada disto- eu que implorava. Eu suplicava. Eu gemia, miava, latia, babava, até ele me ter como sua. Aí ele ficava excitado e partia para a sua missão, feito um Indiana Jones a buscar tesouros no meu corpo, que dessem prazer carnal, espiritual, cósmico, universal e infinito.
Mas, como chegou neste ponto atual?
Um dia ele chegou de uma viagem de serviço, sentou na sua exclusiva poltrona, ligou a TV, como sempre fazia, tirou os sapatos, e gritou o mesmo ritual - Linda!!! Traz meu whisky.
- Silêncio
- Não vou falar de novo, traz a porra do meu whisky
- Silêncio
Levantou irado, pegou um sapato na mão e partiu pela casa me procurando. Entrou no quarto e deparou comigo e uma amiga, nuas, sem fazer nada, apenas estávamos nuas, assistindo um filme de Godard, sabe, o Jean-Luc Godard, que ela trouxe para vermos juntas.
Hummm
Então, ele quis, desejou, sei lá, fez uma leitura rápida de que estávamos ali para ele, eu acho. Só que não. Era um momento neutro. Aí desde este dia ele ficou me agredindo assim.
Ele perguntou qual era o filme?
Engraçado, agora que você falou, estou recordando que foi a sua primeira pergunta.
E posso saber qual era?
Sim, claro, era O desprezo.
O senhor, que ainda não disse nada, mas terá a sua oportunidade, pode aguardar lá fora somente um instante? Assim que terminarmos aqui o chamarei.
Para que isto? Quer ficar com ela, fala logo.
Senhor, não é nada disto, a ética predomina sobre a conduta. Só espero que aguarde, por favor.
Eu vou sair, mas fique sabendo que poderei abrir a porta a qualquer instante, por isto não a tranque, doutor.
Bem, vamos falar sobre isto agora, só nós dois - Olha só, pode ficar tranquila, isto tudo não passou de um grande mal entendido. Ele chegou de uma viagem, uma odisseia, e diante da duas cenas, vocês nuas e Brigitte em frenesi, sofreu um surto de transferência instantânea entre o real e o virtual.
Sério?
Sim, pode ficar tranquila. Nós, analistas da Escola da Pitangueira denominamos isto de Paralelismo Momentâneo devido a uma interligação radial entre o Fator Gerador e o Receptor. Assim que ele sair deste transe sua vida volta ao normal.
Nossa, fiquei até mais tranquila agora... Mas e como ele sairá do transe?
Bem, a chave d acura está com você e a sua amiga. Você precisará de uma chave de transferência automática. Obrigado pela atenção. Bem, agora preste atenção - chame a sua amiga, retornem à cena, mas mude o filme para um do Bergman.
Bem, a chave d acura está com você e a sua amiga. Você precisará de uma chave de transferência automática. Obrigado pela atenção. Bem, agora preste atenção - chame a sua amiga, retornem à cena, mas mude o filme para um do Bergman.
Não entendi. Por que Ingmar Bergman?
Sugiro "Persona". Assim que ele voltar de outra odisseia, ao encontrar as duas nuas na cama, assistindo a este filme, terá um choque de conflito entre o que se passa e o que se vê, tudo na velocidade da luz. O antes e o depois no mesmo processo de alucinação. Esta será a chave de transferência automática. Vá! Seu casamento está salvo!
É isto aí!
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