segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Papo de Esquina - Uma bicicleta no céu


- Rapaz, sabe de quem eu lembre hoje? Do Geraldinho Caolho.

- Conheci bem. Contam que depois da mulher fugir com o Zé Gaiteiro, ficou quase um ano dentro de casa, até que um dia decidiu mudar o rumo da sua história e fez as preces conhecidas e decoradas, diante da imagem de uma santinha miúda, descorada, de sua grande devoção e predileção, que recebera como herança da avó materna.

- Lembro que como não sabia mais do que as duas rezas, dava-se por satisfeito e selava tudo num sinal da cruz invertido, da direita para a esquerda, segundo aprendera com o avô paterno, um cristão ortodoxo.

- Dona Aparecidinha da Venda, uma viúva que vigiava e agarrava o Geraldinho mais que tango argentino, revelou que naquele domingo o homem vestiu a melhor roupa, exclusiva para ocasiões especiais. Passou gel no cabelo, abusou do desodorante perfumado, calçou o melhor sapato com uma meia nova. Fez o café do jeito que gostava, forte, seco, sem açúcar. Sentou na cadeira da ponta anversa à imagem da cruz colocada por sobre a cristaleira centenária, herdada da família. 

- Ela disse para mim que ele comeu solenemente um pão brioche com manteiga e mussarela compradas na Venda ainda de manhãzinha. Degustou cada gole da bebida quente e forte. Sentia o coração apertar, mas a hora chegara. Era agora ou nunca, repetia dezenas de vezes para auto-afirmar o comando mental. Era agora ou nunca ... era agora ou nunca ...

- Chica das Dores, outra cheia de graça e assanhamento pelo Geraldinho, comentou que por coincidência, enquanto por acaso passava em frente da casa, resolveu dar uma espiadinha pela fresta da janela, e viu que ele levantou-se da cadeira com ares de quem não se preocupava com mais nada.  Retornou aos cômodos, verificou se as janelas e a porta dos fundos estavam trancadas. Verificou o gás; colocou os dois gatos para fora, passou pela sala, pegou seu chapéu estilo Fedora, clássico, com aba larga, trancou a porta que dava para um alpendre florido. Deu a volta, foi no quintal e soltou quinze passarinhos presos num viveiro, além do cachorro que o acompanhara por pelo menos dez anos. Olharam-se com ternura e tristeza.

- Terezinha da Sossó, a graciosa e fogosa vizinha do lado, que devorava de todas as formas o moço sempre com esperança de casar, viu quando ele pegou sua bicicleta sueca Raybar, de quadro duplo e aro 28, intacta tal qual o pai descrevera quando a comprou em 1958, levou-a até o portão, abriu o cadeado, saiu com seu veículo, trancou o portão, olhou para os gatos assustados, para o cachorro correndo pelas ruas descalças, para a dúzia de vasos pendurados no alpendre, para as bananeiras e laranjeiras entre o abacateiro e a graviola. Daí suspirou fundo. Alguém passou e deu bom dia; sem se virar respondeu pausadamente com um bom dia fraco e discreto.

Subiu na bicicleta e sem olhar para trás partiu ao infinito que acreditava existir atrás das montanhas que cercavam o vale. Nunca mais foi visto. Quanto à casa, três meses depois da sua partida, Zé Gaiteiro parou o caminhão de leite na porta e despejou a mulher, devolvendo para quem de direito. Para surpresa dela, ninguém morava mais ali, e assim descobriu que voltou para o que definitivamente acabou..   

As prosas sobre Geraldinho Caolho foram se esvaindo até inexistir alguma história nova. Seu nome virou lenda e dizem que de certa forma achou um jeito de entrar com a bicicleta no céu. De quebra deixou três viúvas de nariz torcido para a ex-esposa reaparecida e devolvida, para contarem as qualidades do Geraldinho, mas aí já é outra história. 

É isto aí!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Gratidão!