quinta-feira, 16 de março de 2023

A Rosa de Paracelso (Jorge Luis Borges)

Fonte imagem: Rádio Câmara - Congresso Nacional

Nota: Numa narrativa repleta de simbolismos, o conto “A Rosa de Paracelso”, de Jorge Luís Borges, fala sobre a relação entre o mestre e o aprendiz. Afinal, qual é o caminho para a verdadeira sabedoria? A ética e a negação ao Jogo de aparências são dois temas do conto. O pano de fundo da obra é a busca da pedra filosofal.

Fonte original do Texto:  O texto é reproduzido do volume “Nove Ensaios Dantescos & A Memória de Shakespeare”, de Jorge Luis Borges, Companhia das Letras, SP, copyright 1995-2008 by María Kodama/Editora Schwarcz, 102 pp. A tradução é de Heloisa Jahn. 


A Rosa de Paracelso (Jorge Luis Borges)

Em sua oficina, que ocupava os dois aposentos do porão, Paracelso pediu a seu Deus, a seu indeterminado Deus, a qualquer Deus, que lhe enviasse um discípulo. A tarde caía. O escasso fogo da lareira projetava sombras irregulares. Levantar-se para acender a lamparina de ferro era demasiado trabalho. Paracelso, distraído pelo cansaço, esqueceu sua súplica. A noite apagara os alambiques empoeirados e o atanor quando alguém bateu à porta. O homem, sonolento, levantou-se, subiu a breve escada em caracol e abriu uma das folhas. Entrou um desconhecido. Também estava muito cansado. Paracelso lhe indicou um banco; o outro se sentou e esperou. Durante algum tempo não trocaram palavra.

O mestre foi o primeiro a falar.

– Lembro-me de rostos do Ocidente e de rostos do Oriente – disse, não sem certa pompa. -Não me lembro do teu. Quem és e o que queres de mim?

– Meu nome é o de menos – replicou o outro. – Três dias e três noites caminhei para entrar em tua casa. Quero ser teu discípulo. Tudo o que possuo, trago para ti.

Puxou um taleigo e emborcou-o sobre a mesa. As moedas eram muitas e de ouro. Fez isso com a mão direita. Paracelso lhe dera as costas para acender a lamparina. Quando se virou, percebeu que a mão esquerda segurava uma rosa. A rosa o perturbou.

Recostou-se, uniu as pontas dos dedos e disse:

– Acreditas que sou capaz de elaborar a pedra que transforma todos os elementos em ouro e me ofereces ouro. Não é ouro o que procuro, e se o ouro te interessa, nunca serás meu discípulo.

– O ouro não me interessa – respondeu o outro. – Essas moedas não são mais que uma prova de meu desejo de trabalhar. Quero que me ensines a Arte. Quero percorrer a teu lado o caminho que conduz à Pedra.

Paracelso disse com vagar:

– O caminho é a Pedra. O ponto de partida é a Pedra. Se não compreendes essas palavras, ainda não começaste a compreender. Cada passo que deres é a meta.

O outro fitou-o com receio. Disse com outra voz:

– Mas existe uma meta?

Paracelso riu.

– Meus detratores, que não são menos numerosos que tolos, dizem que não e me chamam de impostor. Não lhes dou razão, mas não é impossível que seja uma ilusão. Sei que “existe” um Caminho.

Houve um silêncio, e o outro disse:

– Estou disposto a percorrê-lo contigo, mesmo que tenhamos de caminhar muitos anos. Deixa-me atravessar o deserto. Deixa-me divisar mesmo de longe a terra prometida, ainda que os astros não permitam que eu a pise. Quero uma prova antes de empreender o caminho.

– Quando? – disse Paracelso inquieto.

– Agora mesmo – disse o discípulo com brusca determinação.

Haviam começado a conversa em latim; agora, falavam alemão.

O rapaz ergueu a rosa no ar.

– Corre – disse – que és capaz de queimar uma rosa e fazê-la ressurgir da cinza, por obra da tua arte. Deixa-me ser testemunha desse prodígio. É o que te peço, e depois te darei minha vida inteira.

– És muito crédulo – disse o mestre. – Não tenho uso para a credulidade; exijo a fé.

O outro insistiu.

– Precisamente por não ser crédulo quero ver com meus olhos a aniquilação e a ressurreição da rosa.

Paracelso pegara a rosa e brincava com ela enquanto falava.

– És crédulo – disse. – Dizes que sou capaz de destruí-la?

– Ninguém é incapaz de destruí-la – disse o discípulo.

– Estás enganado. Imaginas, porventura, que alguma coisa possa ser devolvida ao nada? Imaginas que o primeiro Adão no Paraíso poderia ter destruído uma única flor ou um talo de relva?

– Não estamos no Paraíso – disse o jovem, teimoso -; aqui, sob a lua, tudo é mortal.

Paracelso se erguera.

– Em que outro lugar estamos? Acreditas que a divindade é capaz de criar um lugar que não seja o Paraíso? Acreditas que a Queda é outra coisa que não ignorar que estamos no Paraíso? 

– É possível queimar uma rosa – disse o discípulo, desafiador.

– Ainda há fogo na lareira – disse Paracelso. – Se atirasses esta rosa às brasas, acreditarias que foi consumida e que a cinza é verdadeira. Digo-te que a rosa é eterna e que apenas sua aparência pode se transformar. Bastaria uma palavra minha para que voltasses a vê-la.

– Uma palavra? – disse o discípulo, estranhando. – O atanor está apagado e os alambiques estão cheios de pó. Que farias para que reaparecesse?

Paracelso olhou para ele com tristeza.

– O atanor está apagado – repetiu – e os alambiques estão cheios de pó. Neste ponto de minha longa jornada utilizo outros instrumentos.

– Não ouso perguntar quais são – disse o outro, com astúcia ou humildade.

– Falo do utilizado pela divindade para criar os céus e a terra e o invisível Paraíso em que estamos e que o pecado original nos oculta. Falo da Palavra que ensina a ciência da Cabala.

O discípulo disse com frieza:

– Peço-te a mercê de mostrar-me o desaparecimento e o aparecimento de uma rosa. Para mim não faz diferença que utilizes alambiques ou o Verbo.

Paracelso refletiu. Depois disse:

– Se eu o fizesse, dirias que se trata de uma aparência imposta pela magia de teus olhos. O prodígio não te daria a fé que procuras. Deixa, pois, a rosa.

O jovem o fitou, sempre receoso. O mestre ergueu a voz e lhe disse:

– Além disso, quem és tu para entrar na casa de um mestre e exigir dele um prodígio? Que fizeste para merecer semelhante dom?

O outro replicou, trêmulo:

– Sei que nada fiz. Peço-te em nome dos muitos anos que passarei estudando à tua sombra que me deixes ver a cinza e depois a rosa. Não te pedirei mais nada. Acreditarei no testemunho dos meus olhos.

Num gesto brusco, empunhou a rosa que Paracelso deixara sobre a mesa e lançou-a às chamas. A cor sumiu e restou somente um pouco de cinza. Durante um instante infinito esperou as palavras e o milagre.

Paracelso não se movera. Disse com curiosa singeleza:

– Todos os médicos e boticários da Basileia afirmam que sou um embuste. Talvez estejam certos. Aí está a cinza que foi a rosa e que não a será.

O rapaz sentiu vergonha. Paracelso era um charlatão ou um mero visionário, e ele, um intruso, transpusera sua porta e agora o obrigava a confessar que suas famosas artes mágicas não existiam.

Ajoelhou-se e lhe disse:

– Agi de forma imperdoável. Faltou-me a fé, que o Senhor exigia dos fiéis. Deixa que eu continue vendo a cinza. Voltarei quando estiver mais preparado e serei teu discípulo, e no fim do Caminho verei a rosa.

Falava com genuína paixão, mas essa paixão era a piedade que lhe inspirava aquele velho mestre tão venerado, tão agredido, tão insigne e afinal tão oco. Quem era ele, Johannes Grisebach, para descobrir com mão sacrílega que por trás da máscara não havia ninguém?

Deixar-lhe as moedas de ouro seria uma esmola. Recolheu-as ao sair. Paracelso o acompanhou até o pé da escada e lhe disse que sempre seria bem-vindo naquela casa. Ambos sabiam que não tornariam a ver-se.

Paracelso ficou só. Antes de apagar a lamparina e de sentar-se na cansada poltrona, recolheu o tênue punhado de cinzas na mão côncava e disse uma palavra em voz baixa. A rosa ressurgiu.

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