quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Versões de mim (Luís Fernando Veríssimo)

 

Alto lá
Este texto não é meu
Confesso que copiei e colei

Vivemos cercados pelas nossas alternativas, pelo que podíamos ter sido.

Ah, se apenas tivéssemos acertado aquele número (unzinho e eu ganhava a sena acumulada), topado aquele emprego, completado aquele curso, chegado antes, chegado depois, dito sim, dito não, ido para Londrina, casado com a Doralice feito aquele teste... Agora mesmo, neste bar imaginário em que estou bebendo para esquecer o que não fiz - aliás, o nome do bar é Imaginário -, sentou um cara do meu lado direito e se apresentou:

- Eu sou você, se tivesse feito aquele teste no Botafogo.

E ele tem mesmo a minha idade e a minha cara. E o mesmo desconsolo.

- Por quê? Sua vida não foi melhor do que a minha?

- Durante um certo tempo, foi. Cheguei a titular. Cheguei à seleção.

Fiz um grande contrato. Levava uma grande vida. Até que um dia...

- Eu sei, eu sei... - disse alguém sentado ao lado dele.

Olhamos para o intrometido... Tinha a nossa idade e a nossa cara não parecia mais feliz do que nós. Ele continuou:

- Você hesitou entre sair e não sair do gol. Não saiu, levou o único gol do jogo, caiu em desgraça, largou o futebol e foi ser um medíocre propagandista.

- Como é que você sabe?

- Eu sou você, se tivesse saído do gol. Não só peguei a bola como me mandei para o ataque com tanta perfeição que fizemos o gol da vitória. Fui considerado o herói do jogo. No jogo seguinte, hesitei entre me atirar nos pés de um atacante e não me atirar. Como era um herói, me atirei...

Levei um chute na cabeça. Não pude ser mais nada. Nem propagandista. Ganho uma miséria do INSS e só faço isto: bebo e me queixo da vida. Se não tivesse ido nos pés do atacante...

- Ele chutaria para fora. Quem falou foi o outro sósia nosso, ao lado dele, que em seguida se apresentou:

- Eu sou você se não tivesse ido naquela bola. Não faria diferença.

Não seria gol. Minha carreira continuou. Fiquei cada vez mais famoso, e com fama de sortudo também. Fui vendido para o futebol europeu, por uma fábula.

O primeiro goleiro brasileiro a ir jogar na Europa. Embarquei com festa no Rio...

- E o que aconteceu? - perguntamos os três em uníssono.

- Lembra aquele avião da Varig que caiu na chegada em Paris?

- Você..

- Morri com 28 anos.

- Bem que tínhamos notado sua palidez.

- Pensando bem, foi melhor não fazer aquele teste no Botafogo...

- E ter levado o chute na cabeça...

- Foi melhor - continuei - ter ido fazer o concurso para o serviço público naquele dia. Ah, se eu tivesse passado...

- Você deve estar brincando! - disse alguém sentado a minha esquerda.

Tinha a minha cara, mas parecia mais velho e desanimado.

- Quem é você?

- Eu sou você, se tivesse entrado para o serviço público.

Vi que todas as banquetas do bar à esquerda dele estavam ocupadas por versões de mim no serviço público, uma mais desiludida do que a outra.. As conseqüências de anos de decisões erradas, alianças fracassadas, pequenas traições, promoções negadas e frustração. Olhei em volta. Eu lotava o bar. Todas as mesas estavam ocupadas por minhas alternativas e nenhuma parecia estar contente. Comentei com o barman que, no fim, quem estava com o melhor aspecto, ali, era eu mesmo. O barman fez que sim com a cabeça, tristemente.

Só então notei que ele também tinha a minha cara, só com mais rugas..

- Quem é você? - perguntei.

- Eu sou você, se tivesse casado com a Doralice.

- E...?

Ele não respondeu. Só fez um sinal, com o dedão virado para baixo...

Creio que a vida não é feita das decisões que você não toma, ou das atitudes que você não teve, mas sim, daquilo que foi feito. Se bom ou não, penso, é melhor viver do futuro que do passado.


"Porque tudo vale a pena, se a alma não é pequena".

 

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