quinta-feira, 20 de julho de 2017

A echarpe azul daquela noite de verão


Eu era delegado numa cidade pequena, de vinte mil pessoas que se conheciam. O trabalho era tranquilo, sem maiores complicações. No último verão, calor insuportável, três horas da manhã num plantão normal na delegacia. - dois bêbados, um ladrão conhecido e uma mulher exibicionista e foi só. Silêncio suficiente para todos dormirmos em paz, apesar do calor insuportável.

Naquela época ocorreu a derrubada da prefeita eleita só pelos pobres, e por causa disto lotou a prefeitura de criaturas estranhas, mal vestidas e esquisitas. Depois de um dia intenso de comemorações com desfile do Grêmio pela Tradição e Família, pelo Grêmio Literário, A Associação pelas Amigas da Fé, a Liga dos Amigos do Truco, das crianças e dos heróis da cassação, a cidade parecia querer descansar.

Até que ...

O telefone me acordou de sobressalto. Era do hotel. Levantei e a guarnição de um cabo e dois soldados já me esperavam na porta. Fiz sinal para que dois ficassem e fui com o Nestor, um cabra dos bons. Afinal, pensava enquanto atravessava a praça entre a delegacia e o estabelecimento, o que poderia ter acontecido no hotel de tão grave assim?

Martinelli, um italiano hipercinético, era o proprietário e de longe já acenava desesperado para que eu acelerasse o passo. Pedi ao soldado que retornasse com todos os reforços disponíveis. Comecei a ficar preocupado. Martinelli era um velho amigo, gordo, cabeleira branca, jogador de truco e contador de casos. Fora viajante por 30 anos, até que num choque de realidade, descobriu-se só, longe 30 anos da família, não conhecia os filhos e a esposa para voltar para casa, pegou o que sobrou da partilha do divórcio , comprou a propriedade e juntou-se à Margareth, que era a moça que gerenciava o hotel. Desde então o italiano virou patrimônio da cidade.

O hotel era um sobrado que no passado fora sede da fazenda do Coronel Bezerra, dono de tudo e de todos - O andar superior era todo avarandado, com 12 quartos, sendo seis com banheiro interno e os outros seis utilizando os dois banheiros que foram adaptados no final do corredor, onde antigamente era uma sala reservada. Na parte de baixo a cozinha imensa, a dispensa, os quartos dos empregados, uma copa muito grande, duas salas e a recepção.

Doutor, o senhor não vai acreditar, disse-me em tom de desespero enquanto subia arfando a escada de acesso aos quartos. Abriu a porta do número 7 e deixou que eu entrasse. De arma em punho fui observando o ambiente até deparar com Dona Amelinha nua, inerte, pálida, fria e morta por sobre a cama. Dona Amelinha era a professora mais antiga do lugar, filha caçula do Coronel Bezerra, e tinha uns 70 anos pelo menos, pouco cabelo e uma face sem rugas.

Virei para a porta e indaguei gestualmente ao Martinelli o que significava aquilo. Ele fez sinal para que o acompanhasse, atravessamos o corredor e entramos no quarto da frente, da ala sem banheiro. Ainda assustado, explicou que na noite anterior o Doutor Bernardes, médico decano da região, casado com Dona Glorinha, beata medalha de ouro, dera entrada no hotel com a desculpa do Truco e subiu ao apartamento 7. Logo em seguida Dona Amelinha, como de costume, entrara pelos fundos e subira para terem seus momentos íntimos de prazer, iniciados quando ela enviuvou há 35 anos atrás.

E cadê o Doutor Bernardes? - Fez sinal com o indicador para que o acompanhasse. Seguimos o longo corredor até os fundos do hotel, onde jazia nu, em estado priápico, com a cabeça suavemente encostada na grade de madeira que contornava toda a varanda da casa, de tal modo que parecia estar cochilando. Olhei para baixo, não vi nada fora de ordem. Havia uma echarpe azul presa à mão do falecido. Pressenti que a conhecia, mas até aquele instante tive dúvidas - não pode ser ... pensava.

Retirei com cuidado a peça da mão do falecido, e senti no ar o mesmo perfume que me trouxe lembranças gozosas de um passado não muito distante. Veio a percepção das coincidências desconcertantes - eu conhecia a dona daquela echarpe. De uma excursão ao Paraguai a conheci, apaixonei, comprei-lhe a echarpe e um perfume francês. Tempos depois nos encontramos aqui num evento social, casada e ... bem ... não pode ser ... será?

Depois das fotografias, pedi que vestissem o Doutor e o colocassem no térreo, na sala do Truco, enquanto a Dona Amelinha deveria permanecer na cama onde faleceu, na mesma casa que nasceu. Afinal ninguém precisava saber dos detalhes, já que não havia marcas de violência, sinais de luta, e nem sintomas de envenenamento. Fui à casa do médico, onde insistentemente bati a campainha, e nada. Ouvi um barulho de queda ou salto, corri para os fundos da casa e segurei Agenor, o barbeiro, semi-nu, se apressando para sair do ambiente. Era um mulato franzino, pobre e muito falante, da turminha miúda da ex-prefeita.

Esperei que vestisse a roupa, algemei e o entreguei ao Cabo para levar à delegacia, enquanto entrava na casa em total silencio. Doutor Bernardes tinha três filhos, todos residentes na capital, uma moça e dois rapazes, curiosamente bem feios. Subi os degraus tenso. No quarto do casal, sob a coberta, com a TV ligada e cara de assustada, estava Dona Rita de Cássia, morena de corpo interessante, com uns quarenta anos, desposada do Doutor quando este enviuvou de Dona Geraldinha, que morreu de câncer. 

Dona Rita, séria, moralista, catequista da igreja e presidente do Grêmio da Tradição da Família Cristã ficou espantadíssima com minha presença. Fiz sinal de silêncio com o indicador à boca, caminhei até o banheiro, que estava vazio, percebi a janela fechada, destas italianas de guilhotina e veneziana. Deduzi que esteve sempre fechada. Fiz novamente sinal para que ficasse quieta.

Sai e fui para o quarto do fundo do corredor, com dona Rita atrás de mim, colada nas minhas costas,  com uma camisolinha - hummm, que delícia, Dona Rita!!!! - aquilo de certa forma mexeu comigo, sei lá.

Fui abrindo a porta devagar e deparei com a filha do médico, feinha, coitada, meio sem graça, meio sem entender nada, com uma toalha no cabelo e um roupão sobre o corpinho seco, saindo do banheiro. Entendi a situação vendo a janela aberta e foi dali que o suspeito pulou para escapar do delito, pensei.

Dona Rita não sabia que ela havia chegado e ela não sabia que Dona Rita estava na casa. Voltei os olhos à ela, guardei a arma e dei a notícia. Não chorou e nem sorriu, ao contrário da madrasta que fez pranto antes de terminar a frase. Logo deduzi que a feinha poderia estar mancomunada com o suspeito em agora provável crime com duas vítimas fatais.

Fui para a delegacia. Agenor estava desesperado. gritando - me larga, sou inocente, eu não fiz nada, enfim, aquela cantilena de todo suspeito que deve. Mandei recolher para averiguação além do crime de adultério, já que o suspeito era casado. Determinei a apreensão do Renatinho, um negão corpulento faz-tudo, que dormia na praça, e que deve ter sido cúmplice para dar uma provável cobertura ao suspeito dos supostos crimes.

Sentei na cadeira e dormi com a echarpe na mão. Tive sonhos fantásticos e ao mesmo tempo estranhíssimos. Acordei às seis horas com o agente funerário educadamente batendo à mesa, para que eu pudesse responder sobre o atestado de óbito, já que o falecido era o emissor oficial da cidade.
- Fonseca, eu disse ao agente funerário, liga para o Doutor Safrinha, sabe? - então, liga para ele e pede os atestados de óbito, fala que os falecidos morreram sem assistência médica e que ele deixe a causa mortis em branco, sei lá, vai que tem alguma coisa que a gente não sabe. Mas bico calado, Fonseca, bico calado. Fala que preciso para hoje ainda, e que é um pedido meu, fala assim que ele atende.

Doutor Safrinha era filho e neto dos Doutores Safra, os mais famosos médicos da região, nascidos e instalados na cidade vizinha, e tinha a mania de promover festas não convencionais na fazenda herdada do avô materno, localizada na minha jurisdição - festas Rave, doutor, tem nada de mais, festas rave ... e ria descaradamente. E graças à natureza ácida, digamos assim, destas festas, eventualmente eu, em nome da amizade, resolvia pendências inerentes ao êxtase da garotada.. 

Resolvida esta questão legal, cheguei na porta da delegacia e vi o aglomerado de curiosos, amigos e parentes dos dois falecidos, na porta do hotel. Observei com atenção atravessarem toda a extensão da praça o dentista, Doutor Juan Benitez Mendoza, um boliviano de etnia guarani, impecavelmente de branco e ao seu lado a estonteante paraguaia Jovencita Paloma Bianco, ou Palomita, como gostava de ser chamada.

Palomita era promoter, cantora, bailarina, artista plástica, instrumentista, professora de Tai-Chi e Muay Thai no Clube da Família. Todas as festas e solenidades municipais passavam por ela, sem exceção. E tinha uma voz, que voz! E tinha um corpo, que corpo! E tinha um jeito, que jeito! E um balanço, que balanço! E umas coxas, que coxas! Enquanto atravessavam a praça, ela de braço dado ao dele, olhou para mim, como perguntando algo, eu respondi acenando com a echarpe. 

Dona Amelinha foi enterrada ao meio dia em ponto, com os sinos repicando o luto da cidade. As crianças do Coral da Escola Municipal Coronel Bezerra cantaram músicas de roda, hinos religiosos, o padre fez um discurso emocionado, bem como a diretora, o prefeito, três vereadores e o presidente do Grêmio Literário. O calor sufocante não foi capaz de dispersar aquela multidão tamanho o carinho com a beata, casta e dedicada Dona Amelinha.

Doutor Bernardes teve o cortejo saindo da sua casa sob intensa chuva de verão, das piores tempestades dos últimos anos - não faltaram raios, ventania, trovões assustadores e carpideiras à frente do féretro. Estranhamente seus dois filhos não vieram e nem deram satisfação à madrasta. Doutor Ernesto, em vida, já havia passado a casa para ela, bem como o sítio e os dois carros, além de uma pensão satisfatória. O corpo deu seu último passeio por quase todo centro, entre silêncio de uns, prantos contidos de outros e chuva, muita muita chuva.

Não demorou quinze minutos depois do meu retorno à delegacia para receber Palomita - madre de dios - que mujer ... que mujer ... trazia sobre seu escultural corpo, um vestido de algodão puro em renda, valorizando toda a obra prima que a natureza esculpiu ... que mujer ... que mujer ... tirei a echarpe da gaveta e a indaguei com os olhos.

Sua boquita de cereza tremeu, mas dos seus lábios, sob a melodia da sua voz e com seu delicioso sotaque paraguaio, foi narrando o que a sua echarpe fazia na mão do falecido. Bem, doutor, tudo começou quando o pão-duro do Kaká marcou uma sessão terapêutica  comemorativa da sua posse, comigo no hotel, e como ele é conhecido pela sovinice, talvez pela origem libanesa, nunca se sabe, ficamos na ala sem banheiro. 

Kaká do Quibe? Você estava com o prefeito? Com o nosso prefeito?

Isto, exatamente isto. Ao sair para me lavar, enquanto o pão-duro se arrumava, Doutor Ernesto abriu a porta, nu, com o visível processo da ação farmacológica de determinado medicamento comprado hoje na farmácia do Parreira, bem na minha frente, sem nenhum pudor e ainda fez piadinha comigo, velho assanhado - Palomita era rica em detalhes e isto ajudaria muito.

Então quer dizer que o Parreira, aquele comunistazinho de merda vendeu este medicamento ao Doutor Ernesto, hem? Onde vamos parar. Bem, prossiga, Palomita. 

Eu corri para o banheiro e ele veio atrás de mim, meio cambaleante com a mão no peito e puxou minha echarpe, foi quando teve ou já estava tendo um ataque cardíaco e foi encostando na grade com os olhos arregalados, parecia que babando, ou tentando falar algo, tipo ai que dor ... ai que dor ... acho que era isto ...

Diga uma coisa, Palomita, isto é muito importante, por acaso ele não teria dito Agenor??? Pense ... você não domina plenamente o português. Quem sabe se enganou?

Pode ser, o Kaká já estava lá quando ele ficou repetindo sei lá o que "ôr". Aí o Kaká me puxou depressa, saímos pela escada de serviços. Só de manhã que fui entender que ele deve ter feito um quadro de pânico ao ver que a Dona Amelinha havia morrido e saiu para chamar alguém para ajudar a socorre-la. Foi isto.

O Kaká pode confirmar isto?

Ele está lá fora, o senhor quer falar com ele agora? Pergunta para ele se ele lembra se o Doutor não disse Agenor . Só isto, depois se ele tiver tempo, passa aqui e confirma comigo.

Agora, apesar de não ter provas, eu tinha a convicção de que o Agenor foi contratado pelo Parreira, e teve a cobertura do Renatinho faz-tudo para liquidar a vida de dois dos maiores heróis da derrubada legítima da impostora. Mandei recolher o Parreira para averiguação. O boato, de que os dois foram vítimas de uma trama macabra, não sei como, vazou para a cidade, e acabou que os homens de bem em quantidade enorme, mascarados, invadiram a delegacia num momento de fragilidade na segurança e fizerem a justiça divina contra os assassinos nefastos e perigosos. Finalmente a cidade estava definitivamente livre de comunistas, bandidos e corruptos.

Naquela noite eu fui para a casa do falecido Doutor Ernesto para consolar a Dona Rita, pensando na Palomita ... e depois voltei, voltei de novo, de novo, até não precisar mais sair de lá. E a Feinha já havia retornado para a capital, será que foi ela a mentora que financiou o duplo homicídio? Depois eu penso nisto. 

É isto aí!

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