domingo, 12 de julho de 2020

A Hora íntima - Vinícius de Moraes

A Hora Íntima
Vinícius de Moraes
Rio de Janeiro , 1950


Quem pagará o enterro e as flores 
Se eu me morrer de amores? 
Quem, dentre amigos, tão amigo 
Para estar no caixão comigo? 

Quem, em meio ao funeral 
Dirá de mim: - Nunca fez mal... 
Quem, bêbedo, chorará em voz alta 
De não me ter trazido nada? 

Quem virá despetalar pétalas 
No meu túmulo de poeta? 
Quem jogará timidamente 
Na terra um grão de semente? 

Quem elevará o olhar covarde 
Até a estrela da tarde? 
Quem me dirá palavras mágicas 
Capazes de empalidecer o mármore? 

Quem, oculta em véus escuros 
Se crucificará nos muros? 
Quem, macerada de desgosto 
Sorrirá: - Rei morto, rei posto... 

Quantas, debruçadas sobre o báratro 
Sentirão as dores do parto? 
Qual a que, branca de receio 
Tocará o botão do seio? 

Quem, louca, se jogará de bruços 
A soluçar tantos soluços 
Que há de despertar receios? 

Quantos, os maxilares contraídos 
O sangue a pulsar nas cicatrizes 
Dirão: - Foi um doido amigo... 

Quem, criança, olhando a terra 
Ao ver movimentar-se um verme 
Observará um ar de critério? 

Quem, em circunstância oficial 
Há de propor meu pedestal? 
Quais os que, vindos da montanha 
Terão circunspecção tamanha 
Que eu hei de rir branco de cal? 

Qual a que, o rosto sulcado de vento 
Lançará um punhado de sal 
Na minha cova de cimento? 

Quem cantará canções de amigo 
No dia do meu funeral? 
Qual a que não estará presente 
Por motivo circunstancial? 

Quem cravará no seio duro 
Uma lâmina enferrujada? 
Quem, em seu verbo inconsútil 
Há de orar: - Deus o tenha em sua guarda. 

Qual o amigo que a sós consigo 
Pensará: - Não há de ser nada... 
Quem será a estranha figura 
A um tronco de árvore encostada 
Com um olhar frio e um ar de dúvida? 

Quem se abraçará comigo 
Que terá de ser arrancada? 
Quem vai pagar o enterro e as flores 
Se eu me morrer de amores?

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