sábado, 20 de novembro de 2021

Uma didática da invenção (Manoel de Barros)


Alto lá
Este poema não é meu
Confesso que copiei e colei
Fonte do poema: revistabula
Publicação original: O livro das ignorãças / Manoel de Barros. 
Editora: Alfaguara - RJ, 2016. 
Imagem: Carnaval de Arlequim (1924-25), de Joan Miró
Fonte da Imagem: todamateria

Uma didática da invenção (Manoel de Barros)

I  

Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

II  

Desinventar objetos. 
O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham
idioma.

III 

Repetir repetir — até ficar diferente.
Repetir é um dom do estilo.

IV 

No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.

V

Formigas carregadeiras entram em casa de bunda.

VI

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.

VII

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

VIII

Um girassol se apropriou de Deus: foi em
Van Gogh.

IX

Para entrar em estado de árvore é preciso
partir de um torpor animal de lagarto às
3 horas da tarde, no mês de agosto.
Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer
em nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até
o mato sair na voz .
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

X

Não tem altura o silêncio das pedras.

2 comentários:

  1. Minas Gerais, 20 de novembro do fatídico ano de 2021

    Caro Paulo,
    onde há ignorância profunda há a censura, o medo dos que libertam e dos que são livres: com as palavras, as artes, os sentimentos.

    2021, o ano em que Manoel de Barros foi censurado por um governo miserável (em qualquer sentido existente ou novo - que só os poetas podem criar). Não sabem que os poemas não podem ser detidos, como os sonhos.
    Viva Manoel de Barros! Viva as Ignorãças, que são mais fortes que as ignorâncias destes que estão passando. E viva o Reino da Pitangueira que resiste ao medo que querem nos impelir.
    Abraços,
    Amanda Machado

    ResponderExcluir
  2. Minas Geraes, 21 11 21 14Hs39min

    Querida Amanda,

    Li suas palavras com sentimento estranho. Aquele sentimento "Déjà vu" das coisas e das letras, quando se misturam num vaso e aquels inomináveis e inenarráveis deixam secar, sem água, sem sol e sem leitores, como se isto inibisse a rosa de florescer por si só. Pensei em Drummond, mas não era só Drummond florescendo na leitura. Veio à memória Garcia Lorca, por motivos literários não ficcionais.

    É com Garcia Lorca, abaixo, na parte do seu tenso poema "Este é o prólogo" onde estava o "Déjà vu" que despertara com suas palavras.

    Nos livros de versos,
    entre rosas de sangue,
    vão passando as tristes
    e eternas caravanas

    que fizeram ao poeta
    quando chora nas tardes,
    rodeado e cingido
    por seus próprios fantasmas.

    Poesia é amargura,
    mel celeste que emana
    de um favo invisível
    que as almas fabricam.

    Poesia é o impossível
    feito possível. Harpa
    que tem em vez de cordas
    corações e chamas.

    Poesia é a vida
    que cruzamos com ânsia,
    esperando o que leva
    sem rumo a nossa barca.

    Livros doces de versos
    sãos os astros que passam
    pelo silêncio mudo
    para o reino do Nada,
    escrevendo no céu
    suas estrofes de prata.

    Oh! que penas tão fundas
    e nunca remediadas,
    as vozes dolorosas
    que os poetas cantam!

    Deixaria neste livro
    toda a minha alma...

    ResponderExcluir

Gratidão!