quarta-feira, 17 de abril de 2024

Cartas avulsas XII


Havia o brilho do seu olhar nas gotas orvalhadas do sereno sobre a caprichosa teia adornando o pé de graviola. O sereno formou-se na noite clara, de céu limpo e calmo. Brinquei com a difração da luz matinal sobre a arte engenhosa da natureza. Eram seus olhos a iluminar minha saudade.

Neste instante ocorreu-me, num átimo de memória, lembrar que o poeta Fernando Pessoa escreveu, certa vez, que "só para ouvir o murmúrio do vento valia a pena ter nascido". 

Gosto de pensar que sua existência se justifica pela variedade de saudades que é capaz de acumular. Saudades da gente, das coisas, dos lugares, das comidas, das sensações, dos sentimentos e tantas outras coisas mais que atravessaram as membranas do coração e ali se enfurnaram feito bicho da seda.

Então, de uma maneira instintiva fui engendrando sua ausência nesta carta, de forma que desejo concluí-la dando-lhe este poema do Fernando Pessoa, afinal foi por ele que fiei a saudade do brilho deste seu olhar, nesta manhã de outono. Espero que goste.

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)
Poema: Realidade

A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei-de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada,
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos,
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

7-11-1915

“Poemas Inconjuntos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). - 83.

“Poemas Inconjuntos”. 1ª publ. in Athena, nº 5. Lisboa: Fev. 1925.






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