quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O psicanalista da Pitangueira


JP Hummer era um homem discreto e metódico. Casou-se cedo com Catarina Hoffmann e cedo também iniciou um romance com sua jovem cunhada, Marjorie Hoffmann, de quem foi amante por toda a vida, fiel e companheiro.

Tinha construído um pequeno império com seu suor e dedicação. E já alcançava a idade do merecido conforto e gozo da vida. Teve com Catarina Hoffman 3 filhos e com Marjorie teve os melhores momentos das suas lembranças.

Um dia, e este dia sempre chega, JP Hummer acorda, dentro da sua metódica forma de acordar, dirige-se ao banheiro para as abluções devidas e coordenadas. Ao deparar-se diante do espelho não vê o seu rosto. Leva imensos segundos para se dar conta daquilo. Levanta as mãos, apalpa a face, mas também não as vê.

JP Hummer grita histericamente. Catarina adentra no banheiro e depara com a cena que não entende. JP olha para ela e pergunta se o vê - sim, claro que o vejo. Olha para o espelho e não está lá. Desmaia e acorda no Hospital uma semana depois.

Encaminhado pela laboriosa equipe médica ao mais renomado psicanalista da Pitangueira, JP Hummer irá experimentar ali o néctar do saber introspectivo, o Eu real.

O analista era um sujeito baixo, despenteado, trancudo, barriga proeminente, camisas largas e soltas, facilmente descrito pelas suas polainas, uma laranja neon e a outra azul intenso, orgulhosamente de lã belga, por sobre sapatos escandalosamente sujos e velhos.

Ao receber JP Hummer e ouvir seus primeiros reclames, entendeu a gravidade do problema e determinou que fizessem sessões diárias até o sinal de uma cura, que poderia aparecer do nada ou de alguma coisa, o que daria no mesmo.

Na primeira sessão, no dia seguinte, o analista escuta novamente toda a história, bem como na segunda, na terceira e começa então a fazer intervenções. Afirma que o indivíduo é lançado na velhice quando perde a autoestima, e esta velhice poderá apresentar-se de forma normal ou patológica a depender da redução do investimento narcísico, que poderá não mais fazer frente às tendências destrutivas e manter o equilíbrio.

JP Hummer não entende merda nenhuma do que ele quis dizer com isto, mas se acha o máximo com aquela coisa narcísica em si.

Nas sessões seguintes o analista cita Jack Messy e extrapola o estádio do espelho para um novo estádio do espelho na velhice. Para ele, é como se houvesse um tempo do espelho quebrado, que consistiria na antecipação, no espelho, da imagem de outro mais velho, de sua própria imagem e da morte. A antecipação não será jubilosa como a da criança, porém aflitiva, pelo retorno inesperado de um corpo fragmentado cujo controle foi perdido com a projeção da imagem decadente e enfeada, repulsiva. A essa projeção do Eu, o analista denomina de Eu/Ego Feiúra.

JP Hummer começa a achar que está entendendo alguma coisa, mas ainda não se vê no espelho. Mas quem era este Jack...Jack..como era mesmo o nome deste sujeito?

Em outra sessão daquela semana o analista afirmou que os espelhos sempre incomodaram os homens. Não foi à toa que Michelangelo disse, de uma maneira didática: “Meu rosto tem algo que me dá medo”. O próprio Freud, sr. JP Hummer, confessou que, durante algum tempo, evitava olhar-se no espelho. Afinal, tentar uma aproximação com a velhice é tentar uma aproximação com a morte e como, para o inconsciente, não há registro de morte nem de velhice — para ele, somos seguramente jovens imortais.

JP Hummer entendeu menos do que achou que entendia, mas acreditava no terapeuta e via aquilo como um processo de cura por pressão induzida da memória estagnada em algum ponto de estrangulamento interior.

Naquela que seria a derradeira sessão, o analista, tentando achar um caminho, plagiando Lacan, como ele mesmo orgulhava em dizer, afirmou provocativamente, de que "a pessoa idosa não existe". O senhor envelheceu, JP Hummer, e "pessoa idosa" é um termo social e, depois da sociedade que o cerca te-lo designado assim, definido desta forma, caracteriza-lo e descreve-lo com seus usos, costumes, temperamento e defeitos, o senhor passou a não mais se enxergar como a pessoa que era. Há um bloqueio óptico.

Saiba que a pessoa idosa tem os cabelos embranquecidos como os seus; o rosto apresenta rugas e manchas escurecidas como as suas; seus reflexos estão lentificados, com enrijecimento das articulações, escoliose e halos senis nos olhos. Do ponto de vista social, o senhor ficou limitado pela sua produtividade, que a aposentadoria se incumbiu de determinar.

Pessoa idosa, sr. JP, designa uma categoria homogênea de indivíduos nos quais o sujeito desapareceu com suas peculiaridades, sua história pessoal, seu caráter, seu temperamento. A pessoa idosa habita a velhice e, em consequência, a casa de repouso ou o quartinho dos fundos da casa no mais amplo sentido, porque é alijada do convívio familiar e social e, isolada, perde seu status social e, muitas vezes, sua pensão, aposentadoria e bens. Daí é normal passar a ser invisível para a sociedade e em casos extremos para si.

JP Hummer saiu dali arrasado. Continuava sem ver-se no espelho e agora trazia consigo halos senis nos olhos...halos senis...halos...caramba, é isto!! Pegou um táxi, e foi à casa de Marjorie, que não via desde o início da crise. Chegou, se abraçaram, se beijaram, se inteiraram em um único ser. E JP, por fim, exausto e contemplativo, olhou nos olhos de Marjorie, lá no fundo, e perguntou:

Querida, por acaso eu troquei as nossas lentes de contato? Ela sorriu - Sim, amor, você pegou as minhas e como não voltou, estão guardadas esperando o seu regresso.

Puxa vida, pensou JP Hummer, que analista bom aquele; se não fosse falar do tal do bloqueio óptico, jamais lembraria disto. Vou te levar lá, Marjorie...
- Larga a mão de ser besta, JP, e agora vem aqui desbloquear meu foco...

É isto aí!


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