segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Verás que os filhos apátridas fogem à luta.

Ando desanimado de escrever. Dia destes subi a Colina do Bom Senso para avistar Krypton. O que vi me assustou. Krypton atingiu o momento kafkaniano, que Kafka definiu em um dos seus aforismos de Zürau assim: "A partir de um certo ponto, não há retorno. Este é o ponto que é preciso alcançar".

Por mais desesperador que seja, será impossível retornar ao que era. Esta nova era, uma complexa mistura do pensamento de Adam Smith com a nata branca nativa, veio à fórceps, sem anestesia, sem dilatação e sem interesses nacionais à frente. Krypton foi vítima de um estupro. Grávida do violador da sua inocência, não só teve a gestação compulsoriamente determinada como o parto gerou o que está aí - um filho nascido sob o domínio ódio e da violência, em cima de pedaladas que não seriam por si só capazes de gerar um feto de natureza apátrida, e os filhos apátridas fogem à luta.

Krypton derreterá feito sorvete ao sol, lambuzando a todos e perdendo o sentido da degustação. Não há a curto prazo nenhum ato que reverta tal coisa. Tudo continuará como está, só que haverá paz nas mídias sociais, no jornais e nas rádios. A violência estará oculta, a pobreza proscrita, a educação silenciada, a saúde depauperada, os riscos sociais banidos e o Paraíso estabelecido com amor, ordem e progresso, tudo conforme profetizou Mago Juca - a sangria será estancada e todos viverão felizes para sempre.

Enfim a impoluta madona, ampla geral e restrita, cederá aos caprichos dos homens de bem. A casta secundária que bancou esta mutação levará pelo menos dez anos para entender em qual cumbuca enfiou a mão, e aí haverá choro e ranger de dentes e seus filhos, as maiores vítimas desta coisa chamada tal-tal karaíba, verão o novo céu e a nova terra de Krypton, onde a riqueza se distribuirá no mínimo para todos e no muito só para a diretoria.

É isto aí
ps - desanimado prá caramba e tal qual Fernando Pessoa, perdi a esperança como uma carteira vazia...

Perdi a esperança como uma carteira vazia...
Troçou de mim o Destino; fiz figas para o outro lado,
E a revolta bem podia ser bordada a miçanga por minha avó
E ser relíquia da sala da casa velha que não tenho.
(Jantávamos cedo, num outrora que já me parece de outra incarnação,
E depois tomava-se chá nas noites sossegadas que não voltam.
Minha infância, meu passado sem adolescência, passaram ,
Fiquei triste, como se a verdade me tivesse sido dita,
Mas nunca mais pude sentir verdade nenhuma excepto sentir o passado)
17-12-1927
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.  - 72.

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