quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Almeida e o outro eu



Chegou tarde, alcoolizado e desnorteado. Perdera o emprego naquela tarde e resolveu beber uma para relaxar. Uma puxou outra, veio um sambinha de roda, veio outra, outra até que tudo acabou e sentiu que deveria voltar ao lar. Custou para abrir a porta da entrada do condomínio. A chave acabou por roçar pelo esforço e a fechadura ficou inválida.

Subiu as escadas com muita dificuldade, três andares intermináveis. A chave deu uma travadinha, mas a porta abriu. Tomou um banho demorado, enxugou com a única toalha que estava no box e foi deitar nu. Acordou com uma mesa de café posta no quarto, toalha bordada e um bilhete - Almeida, uau - que noite foi esta? Sempre te amo, te amei e te amarei. Volto às 15 horas.

Sentou à cadeira, fez o desjejum, procurou alguma roupa, e viu a que usara na véspera, lavada e passada, suavemente dobrada ao pé da cama. Vestiu-se, foi ao banheiro e saiu sem entender muito o que acontecia. Na portaria estava o porteiro, um chaveiro e dois militares. 

Um deles perguntou colocou a mão como sinal de parada. 

- O senhor mora aqui?
- O porteiro logo adiantou afirmando. Sim, este é o Almeida do 304.
- O senhor notou algo suspeito na madrugada, já que arrombaram a porta do prédio? Ouviu ou viu algo?
- Disse que não, tudo estava tranquilo e na perfeita ordem.

Saiu dali sentindo-se meio esquisito, atravessou a avenida, entrou no ônibus para o centro e só quando chegou na porta da empresa, deu conta que estava desempregado. Ao dar meia volta, uma moça linda, sorridente e perfumada o abraçou - você é tudo que sonhei, Almeida. Nossa noite foi maravilhosa. Voltou com ela para o apartamento e a vida fluiu. Arrumou outro emprego, se deram ao amor e passou a aceitar que se chamava Almeida e o outro eu havia desaparecido ou achado outro rumo. 

Um dia encontrou consigo mesmo na calçada em frente ao novo emprego.

- Olá! Lembra de mim? perguntou o outro.
- Olha, hummmmm,  não! Não lembro!
- Não tem problema. Você agora é o Almeida, certo?
- Sim, isto, sou o Almeida. E você?
- Ninguém. Apenas um velho conhecido seu antes de você ser Almeida.

Sentiu-se mal com aquela confusão e só recobrou os sentidos no hospital. Passou dois meses internado desde o encontro. Assim que teve alta, ainda confuso, saiu cambaleante até chegar à rua. A moça linda, sorridente e perfumada misteriosamente o aguardava; o abraçou, pegou-o pela mão levando-o até o carro. Abriu aporta de trás, e esperou que sentasse. O motorista virou-se, sorriu e cumprimentou-o

- Muito prazer, meu nome é Almeida, disse o motorista. Nós vamos levá-lo para casa.

Não conseguiu falar nada. Olhou para o homem que agora era ele e balançou a cabeça num gesto afirmativo e contemplativo. O carro seguiu até uma rua triste, parou e frente a um prédio triste e sujo, e uma garoa fria e úmida surgiu do nada. A moça desceu, abriu a porta e o abraçou novamente, a seguir o conduziu até a portaria imunda e triste. Sentou à porta, pediu um cigarro ao zelador. Fumou pausadamente, entrou e nunca mais foi visto. 

É isto aí!





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