domingo, 8 de novembro de 2020

O analista da Pitangueira - O boêmio e a viúva



- Fale sobre você.

- Boêmio, profissional liberal, passando dos quarenta anos, solteiro e desprendido de emoções maiores desde a mocidade, quando comecei  a me perceber solitário. Passei a procurar com olhar mais atento alguma moça que pudesse preencher este vazio existencial. Aquele vazio que me trás hoje ao analista da Pitangueira.

- Tem mais alguma coisa que o trás aqui?

- Doutor, não sei o que tenho. Estou numa crise sem precedentes, a ponto de repensar minha vida, revisando tudo aquilo que para mim era verdade absoluta.

- Como por exemplo?

- Como por exemplo o casamento, doutor. O casamento!

- Interessante. Fale sobre seus pais.

- Meus pais? Como assim. Tem nada a ver com meus pais. Estou numa crise existencial onde estou me dando conta de que vivi uma vida vazia, a qual nunca quis, mas seguindo os passos da sociedade, entende? Carros, trabalho, mulheres, trabalho, viagens, trabalho, diversão, trabalho, enfim, coisas que sempre achei normal. Meus pais não cabem neste contexto. 

- Entendo. Quando percebeu que se privou de viver naturalmente feliz?

- Interessante sua pergunta, por que sei a resposta.

- E qual a resposta?

- Foi em um velório.

- Quer falar sobre isto?

- Sim, por que desde então só penso nisto. Era o velório do Freitas. Fizemos faculdade juntos, fomos contratados pela mesma empresa, crescemos lá dentro até sairmos e montarmos nosso próprio escritório. Freitas nunca foi de farra, fiel à Lili, sua esposa, e era uma pessoa discreta e tranquila. 

- E vocês eram amigos?

- Claro. Eu contava tudo para ele. Ficava ali escutando, escutando ... aí dizia - tenho isto tudo lá em casa. Eu nunca fiz uma leitura destas palavras. Achava que era uma maneira dele dizer que era feliz. Mas aí, do nada, o sujeito tem um infarto agudo, sem beber, sem fumar, sem fazer nem 10% do que eu faço.

- Então ele teve uma morte natural. Pode ser que já tivesse algo nunca investigado.

- Foi o que pensei, doutor. Mas aí fui no velório. Cheguei lá por volta das seis horas da manhã. Primeiro tive o impacto do corpo inerte no caixão. Enquanto chorava, levantei os olhos e vi Lili. Não da forma como a via, mas com olhar de caçador e ela caça, sabe? Senti um forte impacto em minha existência.

- Estávamos sós. Aproximei, achei a Lili uma ninfa do olimpo a abracei e nos beijamos loucamente. De repente, num instante de lucidez, me afastei e sai correndo pelo cemitério, esquecendo inclusive do carro, que voltei para buscar após o enterro.

- E depois?

- Senti um vazio enorme nos dias que se seguiram. Desconsiderava o imponderável por acreditar que não consegui ver lógica naquilo. Um estranho sentimento começou a conquistar meus desejos. Passei a fazer questionamentos interiores mas evitava respondê-los. 

- E como lidou com este vazio?

- Com revolta. Aquele sentimento me queimava por dentro e eu passei a rejeitar meus pensamentos.

- Muito interessante. E esta revolta? Está aí dentro de você?

- Bem, aos poucos fui aceitando a realidade e parei de correr tanto atrás do que não estava acabado. Reconstruí meus objetivos em cima do que realmente precisava, e descobri que precisava da Lili. Encontrei todas as repostas nela,  e isto me tornou mais consciente com a vida.

- A procurou?

- Sim, claro. Liguei, marcamos um encontro e desde então estamos juntos.

- Então encontrou a felicidade?

- Veja só doutor. Sim e não.

- Como assim?

- Lembra que disse que o Freitas sempre falava que todas as minhas aventuras ele tinha em casa? Pois é, é verdade! Lili é um furacão em constante movimento. Ninguém fala isto ao vê-la, tão quieta, pacata, recatada e silenciosa.

- Então você encontrou o que exatamente, se não a felicidade?

- Doutor, estou apaixonado por esta mulher e só agora entendo o que matou o Freitas, e acho que sou o próximo ... eu é que era a caça e ela a caçadora

- Calma, semana que vem falaremos mais sobre isto.

É isto aí!

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