domingo, 17 de junho de 2018

Amei-te e por te amar (Fernando Pessoa)


Amei-te e por te amar
Só a ti eu não via...
Eras o céu e o mar,
Eras a noite e o dia...
Só quando te perdi
É que eu te conheci...

Quando te tinha diante
Do meu olhar submerso
Não eras minha amante...
Eras o Universo...

Agora que te não tenho,
És só do teu tamanho.
Estavas-me longe na alma,
Por isso eu não te via...

Presença em mim tão calma,
Que eu a não sentia.
Só quando meu ser te perdeu
Vi que não eras eu.

Não sei o que eras. Creio
Que o meu modo de olhar,
Meu sentir meu anseio
Meu jeito de pensar...

Eras minha alma, fora
Do Lugar e da Hora...
Hoje eu busco-te e choro
Por te poder achar

Não sequer te memoro
Como te tive a amar...
Nem foste um sonho meu...
Porque te choro eu?

Não sei... Perdi-te, e és hoje
Real no [...] real...
Como a hora que foge,
Foges e tudo é igual

A si-próprio e é tão triste
O que vejo que existe.
Em que és (...) fictício,
Em que tempo parado

Foste o (...) cilício
Que quando em fé fechado
Não sentia e hoje sinto
Que acordo e não me minto...

[...] tuas mãos, contudo,
Sinto nas minhas mãos,
Nosso olhar fixo e mudo

Quantos momentos vãos
Pra além de nós viveu
Nem nosso, teu ou meu...

Quantas vezes sentimos
Alma nosso contacto
Quantas vezes seguimos
Pelo caminho abstracto
Que vai entre alma e alma…

Horas de inquieta calma!
E hoje pergunto em mim
Quem foi que amei, beijei
Com quem perdi o fim

Aos sonhos que sonhei…
Procuro-te e nem vejo
O meu próprio desejo…

Que foi real em nós?
Que houve em nós de sonho?
De que Nós fomos de que voz
O duplo eco risonho

Que unidade tivemos?
O que foi que perdemos?
Nós não sonhámos. Eras
Real e eu era real.

Tuas mãos — tão sinceras…
Meu gesto — tão leal...
Tu e eu lado a lado...
Isto... e isto acabado...

Como houve em nós amor
E deixou de o haver?
Sei que hoje é vaga dor
O que era então prazer...

Mas não sei que passou
Por nós e acordou...
Amámo-nos deveras?
Amamo-nos ainda?

Se penso vejo que eras
A mesma que és... E finda
Tudo o que foi o amor;
Assim quase sem dor.
Sem dor... Um pasmo vago
De ter havido amar...

Quase que me embriago
De mal poder pensar...
O que mudou e onde?
O que é que em nós se esconde?

Talvez sintas como eu
E não saibas senti-lo...
Ser é ser nosso véu
Amar é encobri-lo,

Hoje que te deixei
É que sei que te amei...
Somos a nossa bruma…
É pra dentro que vemos...

Caem-nos uma a uma
As compreensões que temos
E ficamos no frio
Do Universo vazio...

Que importa? Se o que foi
Entre nós foi amor,
Se por te amar me dói
Já não te amar, e a dor
Tem um íntimo sentido,

Nada será perdido...
E além de nós, no Agora
Que não nos tem por véus
Viveremos a Hora
Virados para Deus
E n'um (...) mudo
Compreenderemos tudo.

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