sábado, 30 de junho de 2018

Saiu de casa, atravessou a rua.

Saiu só com a intenção de ir ali, e nunca mais voltou para dizer adeus, justificar a ausência, falar sobre a morte de uma pessoa viva para as pessoas que o amavam. Nada disto passou pela sua mente naquela manhã. Saiu, partiu, assim, sem caso pensado, sem imaginar que faria daquela forma, sem planejar uma fuga. Partiu ...

Deixou o diploma, os documentos pessoais, o santinho do Menino Jesus de Praga que ganhou da avó materna, o terço de dezena que nunca soube usar, o barbeador elétrico, a aliança e as meias verdes que detestava ...

Atravessou a rua, olhou para a casa, pensou nas lágrimas, nas tristezas, nas agonizantes tempestades, nos invernos prolongados, entrou no coletivo, e esta foi  a última vez que foi visto.

Deixou dívidas administráveis, roupas, sapato que só usou uma vez, deixou a caneta que ganhou de uma paixão alucinante e secreta, deixou as anotações de coisas que faria quando ficasse rico, deixou a toalha molhada jogada no canto do banheiro, o chinelo virado só para irritar e a luz da sala acesa.

Deixou o celular, o terno azul marinho, as cartas que recebeu, a coleção de selos, o jogo de xadrez, a coleção completa do Machado de Assis, o retrato da família, deixou o cartão do banco, os talões de cheque, o carro, a bicicleta, o relógio que ganhou do pai, deixou a saudade, a falta,  a ausência, o adeus, as brigas, o amor, a angústia, a tristeza, a melancolia, as gargalhadas, deixou ...

 Deixou o emprego, o cafezinho, o bar com os amigos, o futebol aos sábados, o clube com a família, as caminhadas com o cachorro, a esperança de dias melhores, os medicamentos na gaveta, o pudim na geladeira, o vazio na sua cadeira, o pranto escondido, as fantasias meticulosamente construídas para fugir de si.

Saiu de casa, atravessou a rua e deixou para trás a história que o fez sair de casa e atravessar a rua.

É isto aí!


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