quarta-feira, 20 de maio de 2020

Amor é fogo que arde sem se ver (Luís Vaz de Camões)


Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor




Análise e interpretação
Fonte: Rebeca FuksDoutora em Estudos da Cultura

Estrutura poética

O poema acima de Camões é um soneto italiano.

O soneto é uma forma fixa de poesia que consiste em quatro estrofes: os dois primeiros com quatro versos (quartetos) e os últimos com três versos (tercetos). A estrutura costuma ser a mesma: começa com a apresentação de um tema, que passa a ser desenvolvido, e, geralmente no último verso, contém uma conclusão que esclarece a questão.

A poesia de Camões segue a fórmula do soneto clássico. É decassílabo, o que significa que contém dez sílabas poéticas em cada estrofe. A sílaba poética, ou sílaba métrica, se diferencia da gramatical porque ela é definida pela sonoridade. A contagem das sílabas em uma estrofe termina na última sílaba tônica.

/é/ um/ con/ten/ta/men/to/ des/con/ten/te
1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10 / x

Nas primeiras onze estrofes podemos observar uma cesura na sexta sílaba poética. A cesura é uma pausa rítmica no meio da estrofe. O poema possui um esquema rímico clássico, formado por ABBA, ABBA, CDC, DCD.

A = er; B= ente; C = ade; D = or.

O conteúdo dos versos

O formato do soneto clássico e a sonoridade estão diretamente relacionados ao conteúdo do poema. Nas onze primeiras estrofes temos o desenvolvimento de um raciocínio, e, nessas estrofes, observamos uma sonoridade próxima por conta das rimas e da pausa na sexta sílaba métrica.

O tema da poesia é desenvolvido por meio do silogismo, que é um sistema de raciocínio desenvolvido por Aristóteles em que afirmações prepositivas levam a uma conclusão lógica. No poema de Camões, as proposições são feitas nos dois quartetos e no primeiro terceto, sendo a última estrofe a conclusão do silogismo.

Camões usa a antítese para desenvolver as suas preposições. Antítese é uma figura de linguagem onde se busca a aproximação de ideias opostas. Deste modo, ele consegue aproximar coisas que parecem distantes para explicar um conceito tão complexo como o amor.

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

No primeiro verso, podemos observar que essas ideias opostas também estão unidas por uma ideia de causalidade: primeiro o fogo, que causa a ferida e que leva à dor. Essa relação ajuda a unir ainda mais a premissa do poema e a entender a imagem que Camões passa do amor.

Por meio da aproximação dos opostos, o poeta nos traz uma série de afirmações sobre o amor que nos parecem contraditórias, mas que são inerentes à própria natureza desse sentimento. Na última estrofe, Camões apresenta a sua conclusão.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor

Camões, mais um poeta a falar sobre o amor:

Camões usa do pensamento lógico para expor um sentimento humano muito profundo e complexo, o amor. O tema do amor é muito caro à poesia, sendo explorado há séculos por diversos escritores.

Um dos pontos mais abordados sobre o amor é em relação a lealdade daquele que ama em relação ao amado. As cantigas medievais versavam constantemente sobre esse sentimento de servidão, e o autor não deixa de colocá-lo no seu poema, usando sempre a antítese para construir seu argumento.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Camões exprime a dualidade desse sentimento de uma forma exemplar. Alcançando o cerne de um dos sentimentos mais complexos que existe; que nos provoca tanto prazer e sofrimento ao mesmo tempo.

Versos atemporais
O poema se torna atemporal na medida em que o tema abordado é universal e as figuras usadas para desenvolvê-lo são complexas e belas. Camões consegue conciliar imagens muito opostas para explicar o que é o amor.

O amor, assim como tudo na vida, é um jogo de dualidades, de ambiguidades, que faz parte do cerne do ser humano. Não existe sentimento humano que possa ser explicado de forma clara e simples. Porém, alguns poetas conseguem exprimir de forma ímpar sentimentos tão complexos como o amor.

Camões é um desses poetas. Seu soneto é um desses exemplos de uso fino da palavra, da criação de figuras e imagens, que nos ajudam a entender um pouco de nós mesmos.


Descubra Camões
Luís Vaz de Camões se tornou um dos maiores poetas da literatura portuguesa.

Nascido em Lisboa em torno de 1524, o rapaz assistiu as conquistas marítimas do grande império português na aquisição de colônias.

O jovem estudou em um convento e mais tarde se tornou professor de história, geografia e literatura. Camões chegou a entrar no curso de Teologia, mas acabou por desistir da empreitada. Por fim ingressou no curso de Filosofia.

Retrato de Luís Vaz de Camões.
Fontes sugerem que Camões era boêmio e teve uma vida agitada, repleta de confusões e casos amorosos. Uma das suas paixões mais ardentes foi com D.Catarina de Ataíde, dama da rainha D. Catarina da Áustria (mulher de D.João III).

Num dos duelos que Camões protagonizou, acabou por ser preso e desterrado durante um ano de Lisboa. A fim de fugir das inimizades que havia criado, em 1547 o poeta se voluntariou para serviu como soldado na África. Durante os dois anos de serviço em Ceuta combateu contra os mouros, o que lhe custou a perda do olho direito.

Após a atuação militar, Camões regressou a Lisboa onde voltou a ter a sua vida boêmia e com complicações.

Durante essa nova temporada na capital portuguesa redigiu o clássico poema épico Os Lusíadas. Em paralelo seguiu escrevendo os seus versos, muitos deles dedicados à lírica amorosa.

Camões faleceu em Lisboa no dia 10 de junho de 1580.

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