terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Dasdores, a mulherzinha e o meu velório

Deitei cedo, estava enfastiado, repleto de tédio e aborrecimentos. Pensei nela e fiquei mais aborrecido ainda. Que mulherzinha chata, puta que o pariu. Levantei, tomei um conhaque para amaciar a garganta e deitei. Dali apouco levantei fui ao banheiro, deitei e tornei a levantar, desta vez para tomar um banho frio, pois de súbito fui tomado por um suor escandaloso.

Deixei a garrafa dentro da pequena pia do banheiro e o copo na saboneteira, e vez ou outra tomava uma dose do conhaque - mas aquela mulherzinha, hem?!? - desta maneira bebia um trago e esperava o alívio debaixo da água gelada. Mas não sentia melhora, foi faltando ar, a vista foi escurecendo, chamei pela mulherzinha, aquela doida, e aquela mulherzinha não estava ali, logo quando mais precisava dela. 

De repente me percebi fora do corpo olhando meu corpo físico tomar banho. Achei aquilo estranho prá caramba. Olhei para mim e meus olhos estavam esbugalhados, as mãos procurando algo no vazio. Fiquei observando aquela situação ridícula, enquanto pensava que ali estavam 50 trilhões de células vivas, que constituíam as unidades existenciais da minha vida. Logo que conclui minhas confabulações, meu corpo que começara a pender ao chão, segurando a merda do sabonete, foi de encontro à queda, e eu ali olhando e pedindo para aguentar firme, que aquilo passava. 

Voltei ao pensamento biológico, refleti que considerando o volume, só poderia concluir que  eu era uma comunidade gigante de células e que minha mente sendo o núcleo governamental, democrático e absolutista de todas as minhas unidades vitais, não permitiria este absurdo de estar me despedindo do mundo daquela forma abjeta, e acreditei que minha mente ativa teria,  com certeza, uma saída para estes momentos - Mas e aquela mulherzinha hem!?  

Meu corpo no chão, desperdiçando toda a água da caixa, estava imóvel. Ficamos ali até amanhecer. Dasdores chegava cedinho, dava uma vassourada no barraco e seguia para a lanchonete. Era um troco sagrado e de vez em quando a gente se pegava. Logo ao entrar, viu a cena, gritou já chorando ou chorou já gritando, correu à porta, chamou João da Bica que passava para a feira. Entrou assustado, aproximou-se de mim, colocou a mão no meu peito, encostou o ouvido no coração e falou - está morto, Dasdores, está morto.

Pegou-me no colo, deitou meu corpo na cama, enrolado na toalha. Dasdores me secou, perfumou, vestiu uma roupa limpa, deu um beijo na minha testa e pediu para João da Bica chamar o padre. Aí pegou todo o dinheiro da minha carteira, foi na lata de biscoito, catou todos os trocados, vasculhou os bolsos no guarda-roupa e achou mais uns duzentos reais, que guardava para as emergências. Voltou ao banheiro, arrumou e limpou tudo e pronto. Fez café, acendeu duas velas bentas na cabeceira da cama e sentou-se como viúva no sofá velho coberto com chenil vermelho remendado com retalho de chita floral.

Antes do padre chegar, aquela mulherzinha entrou como se fosse a dona do barraco. Fez sinal dispensando a companhia de Dasdores, entrou no quarto, ajoelhou seu corpo cheinho e de pele aveludada, ao meu lado. Pegou minhas mãos, beijou-as e disse no meu ouvido - você foi o maior filho de uma puta que já conheci, mas que filho de uma puta gostoso, e chorou baixinho. Ri da sua declaração de amor. Foi aí que uma mulher, muito branca e meio feinha, aproximou de mim e mostrou com a mão uma porta que se abriu na parede do barraco.

Ao entrar naquele corredor de luz, voltei-me para a mulherzinha ainda ajoelhada, cruzamos um longo e sincero olhar de adeus e sinceramente, ali naquela hora, arrependi profundamente de não ter amado mais aquela doida, maluca e romântica  gordinha ...

 Fonte da Imagem: Ilustração: André Ducci

É isto aí!


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