domingo, 15 de junho de 2014

Mia Couto - Prostituição auditiva

Alto lá, este texto não é meu!
Copiei e colei:
Autor - Mia Couto
Conto - Prostituição auditiva
(in Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos, Caminho)
Fonte - http://jardimdasdelicias.blogs.sapo.pt/271016.html


O português gostava era de ouvir as pronúncias dela. Pagava notas só para a ficar escutando a noite inteira. Mariana não tinha que fazer mais nada: só divagar, devagar, sem sexo nem nexo. O tuga, mili­tar até aos botões, só queria que a prostituta falas­se.

—  Mas falar o quê?

A primeira noite ainda a moça perguntou. Depois, entendeu que ele gostava era de nenhumices, simples perfume de sílabas. O homem estaria ali por livre e não espontânea vontade? Enfins, coisa de branco.

—   Vocês, as pretas, não são como as nossas mu­lheres.

—  Como não somos?

—  Vocês falam com o sangue.

Mariana ainda insistiu namoriscar, remexendo as carnes, toda ela oferecível. Mas ele nada. Ficava quieto, só os olhos desembarcavam no corpo dela. A prostituta até se ofendia com aquela inactuância do macho. Seria porque ela não apresentava tatuagens, como os homens de sua raça requeriam? Mulher sem riscos na flor da pele é mulher escorregadiça. Esse é o mandamento da tradição. Mas parece não era.

—   É escusado, Mariana, Eu não toco em preta. Fui educado assim.

—   Ao menos, me espalhe um creme, mezungo.

—   Um creme?

—   É que nós, pretas, secamos mais que lagartos. É nossa raça, assim. Me esfregue um creme, me faça um favor.

Mas ele recusava, nem pele nem óleo. Alergia a gorduras, justificava já em antecipado arrepio. Ela, então, a si mesma se besuntava. Demorava os finos dedos nas intimidades, escorria sensualidade pelas reentrâncias. Depois, já bem bem abrilhantinada, ela se rebolinava à frente do militar lusitano.

— Ainda você não me quer?

Negativo. Mariana, já sem fogo, deitava em esteira e palavreava sem fim. No colchão rasteiro, o portuga adormecia. Ela ainda ficava falando por um tempo, até se certificar de que ele descera às fundezas.

Horas depois, ele se apressava a sair. Pagava os variáveis honorários. Ela armafanhava os dinheiros no soutien. Já sabia o seguinte: antes de sair, o branco lhe pedia para cheirar as notas, tomava-as como se fossem delicadas flores e nelas aspirava fundamente o cheiro do suor dela. Depois, tocava as notas e di­zia:

— Eu transpiro para as ter, tu tem-las transpira­das.

Ela sorria, sem entender o repuxado português, quem sabe era uma simples lusofolia. Ao despedir-se, a mulher sempre insistia em lhe perguntar o nome, apelido de sua existência. Mas ele suavemente se desleixava: nunca, nem jamais.

— Meu nome? Não interessa, não te interessa.
Ele não queria, não podia, não devia. Branco que frequenta as negras não leva sobrenome. É um sol­dado, ponto final. E colocando um dedo ríspido so­bre os lábios de Mariana chegou mesmo a ameaçar: que nunca mais ela se atrevesse a querer saber da identidade dele.

Até que certa noite a prostituta se apresentou afónica, enguiçada nas cordas.

—  Hoje não tenho palavra para lhe dar, soldado.

Foi murmúrio único. Ele se sentou. Sentiu, ante­cipada, a carência da voz dela. Nunca concebeu que a falta desse reconforto lhe viesse a doer tanto. Olhou para Mariana, estranhando. Canoa se inventou antes do rio? O militar se aprontou em serviço de cozinha. Instantaneou um chá, desses curadouros de gargan­tas. Mariana se consolou mais com o gesto dele que com o remédio. Rodou a chávena de alumínio en­quanto olhava para nada:

-  É que bateram em Helena. Mataram ela!

—  Quem é essa, a Helena?

—  Era uma outra... colega.

Ela dobrou as costas, chorando. O militar se sen­tou por trás dela e lhe falou. Com voz de mar, suas palavras eram vagas que nunca encontravam praia. E contou-lhe da sua tristeza. Sim, ele também sabia o que era ver morrer um colega. E se perguntava, tal como ela:

-  Que faço eu no meio disto tudo? Esta guerra, de quem é esta guerra?

A prostituta deu por ele limpando o rosto na man­ga. Uma furtiva tristeza, véspera de lágrima? Entendeu tocar-lhe o cabelo, esse cabelo fino que faz com que os brancos aparentem bonecos de brincar. Mas já o português pegava a caixinha do creme.

—  Deixa, eu te esfrego, Mariana.

Ela sobrancelhou uma surpresa. Ele aceitava tocar-Ihe?! Voltou a sentar, oferecendo as costas. A mão dele sonhou, divagante e devagarosa. Os dedos re­cheados de óleo pareciam chuva escorrendo sobre água. Mariana sentia o aconchego dele.

E eles, muito ambos, aconteceram-se. O soldado escutou, pela primeira vez, o sotaque do corpo dela. O mundo a perder de vistas, o rio perdendo as mar­gens. No final, bem no fim de tudo, ele se estendeu na esteira e, olhando para além do tecto, disse:

—  Sou Raimundo, o major Raimundo!



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