Alto lá, este texto não é meu!
Copiei e colei:
Autor - Mia Couto
Conto - Prostituição auditiva
(in Na Berma de Nenhuma Estrada e outros contos, Caminho)
Fonte - http://jardimdasdelicias.blogs.sapo.pt/271016.html
O português gostava
era de ouvir as pronúncias dela. Pagava notas só para a ficar escutando a noite
inteira. Mariana não tinha que fazer mais nada: só divagar, devagar, sem sexo
nem nexo. O tuga, militar até aos botões, só queria que a prostituta falasse.
— Mas falar o quê?
A primeira noite ainda a moça perguntou. Depois, entendeu
que ele gostava era de nenhumices, simples perfume de sílabas. O homem estaria
ali por livre e não espontânea vontade? Enfins, coisa de branco.
— Vocês, as pretas,
não são como as nossas mulheres.
— Como não somos?
— Vocês falam com o
sangue.
Mariana ainda insistiu namoriscar, remexendo as carnes, toda
ela oferecível. Mas ele nada. Ficava quieto, só os olhos desembarcavam no corpo
dela. A prostituta até se ofendia com aquela inactuância do macho. Seria porque
ela não apresentava tatuagens, como os homens de sua raça requeriam? Mulher sem
riscos na flor da pele é mulher escorregadiça. Esse é o mandamento da tradição.
Mas parece não era.
— É escusado,
Mariana, Eu não toco em preta. Fui educado assim.
— Ao menos, me
espalhe um creme, mezungo.
— Um creme?
— É que nós, pretas,
secamos mais que lagartos. É nossa raça, assim. Me esfregue um creme, me faça
um favor.
Mas ele recusava, nem pele nem óleo. Alergia a gorduras,
justificava já em antecipado arrepio. Ela, então, a si mesma se besuntava.
Demorava os finos dedos nas intimidades, escorria sensualidade pelas
reentrâncias. Depois, já bem bem abrilhantinada, ela se rebolinava à frente do
militar lusitano.
— Ainda você não me quer?
Negativo. Mariana, já sem fogo, deitava em esteira e
palavreava sem fim. No colchão rasteiro, o portuga adormecia. Ela ainda ficava
falando por um tempo, até se certificar de que ele descera às fundezas.
Horas depois, ele se apressava a sair. Pagava os variáveis
honorários. Ela armafanhava os dinheiros no soutien. Já sabia o seguinte: antes
de sair, o branco lhe pedia para cheirar as notas, tomava-as como se fossem
delicadas flores e nelas aspirava fundamente o cheiro do suor dela. Depois,
tocava as notas e dizia:
— Eu transpiro para as ter, tu tem-las transpiradas.
Ela sorria, sem entender o repuxado português, quem sabe era
uma simples lusofolia. Ao despedir-se, a mulher sempre insistia em lhe perguntar
o nome, apelido de sua existência. Mas ele suavemente se desleixava: nunca, nem
jamais.
— Meu nome? Não interessa, não te interessa.
Ele não queria, não podia, não devia. Branco que frequenta
as negras não leva sobrenome. É um soldado, ponto final. E colocando um dedo
ríspido sobre os lábios de Mariana chegou mesmo a ameaçar: que nunca mais ela
se atrevesse a querer saber da identidade dele.
Até que certa noite a prostituta se apresentou afónica,
enguiçada nas cordas.
— Hoje não tenho
palavra para lhe dar, soldado.
Foi murmúrio único. Ele se sentou. Sentiu, antecipada, a
carência da voz dela. Nunca concebeu que a falta desse reconforto lhe viesse a
doer tanto. Olhou para Mariana, estranhando. Canoa se inventou antes do rio? O
militar se aprontou em serviço de cozinha. Instantaneou um chá, desses
curadouros de gargantas. Mariana se consolou mais com o gesto dele que com o
remédio. Rodou a chávena de alumínio enquanto olhava para nada:
- É que bateram em
Helena. Mataram ela!
— Quem é essa, a Helena?
— Era uma outra...
colega.
Ela dobrou as costas, chorando. O militar se sentou por
trás dela e lhe falou. Com voz de mar, suas palavras eram vagas que nunca
encontravam praia. E contou-lhe da sua tristeza. Sim, ele também sabia o que
era ver morrer um colega. E se perguntava, tal como ela:
- Que faço eu no meio
disto tudo? Esta guerra, de quem é esta guerra?
A prostituta deu por ele limpando o rosto na manga. Uma
furtiva tristeza, véspera de lágrima? Entendeu tocar-lhe o cabelo, esse cabelo
fino que faz com que os brancos aparentem bonecos de brincar. Mas já o
português pegava a caixinha do creme.
— Deixa, eu te
esfrego, Mariana.
Ela sobrancelhou uma surpresa. Ele aceitava tocar-Ihe?!
Voltou a sentar, oferecendo as costas. A mão dele sonhou, divagante e
devagarosa. Os dedos recheados de óleo pareciam chuva escorrendo sobre água.
Mariana sentia o aconchego dele.
E eles, muito ambos, aconteceram-se. O soldado escutou, pela
primeira vez, o sotaque do corpo dela. O mundo a perder de vistas, o rio
perdendo as margens. No final, bem no fim de tudo, ele se estendeu na esteira
e, olhando para além do tecto, disse:
— Sou Raimundo, o major
Raimundo!
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