quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Valsa e a moça pálida


Vestiu a única camisa surrada, dobra da gola puída, tipo social lisa em tecido cetim 100% algodão, uma calça social batida,  com tecido Oxford vincado 100%  poliéster. Colocou o cinto gasto de couro preto, calçou a meia social, remendada, de algodão, preta, calçou o surrado sapato social preto, olhou-se no espelho e começou a rir. Riu até a barriga doer de tanto rir.

Olhou para si, dentro dos seus olhos e não se reconheceu. Face glabra, cabelo curto e penteado, sobrancelhas alinhadas. Não se viu na seriedade - aquilo era uma metonímia mal formulada, pensou, pois afinal tomarão este abstrato pelo concreto, que sou eu.

Valsa era um batedor profissional de carteiras do porto. Na realidade, não havia um porto para embarcações de navegação. Porto era a região dos indigentes, das prostitutas, dos desvalidos e das apanhadoras de xepa da cidade.

Todo mundo conhecia o Valsa. Ganhou o apelido ainda rapazote, devido à leveza, a delicadeza e a agilidade para adquirir as objetos adormecidos em bolsos de seda, como dizia.

Era a enciclopédia do Porto - Valsa, quanto dá 10% de 36 mais 14? 5, respondia  ao feirante; Valsa, qual o dia da Bandeira? Valsa, quantas cidades no Piauí que existem e começam com P? Valsa, quem te deu este apelido? Valsa isto, Valsa aquilo, dia após dia.

Valsa havia assumido um casamento. Ganhou dos desvalidos a roupa exclusiva para o dia fatídico. Sentado na cama de colchão de palha, não se viu naquele homem. Este não sou eu - saiu à porta e uma metade seguiu triste para a cerimônia e a outra ficou esquálida, torcendo para que a moça pálida não comparecesse ao evento.

Ao chegar na Capelinha de São Jorge, estava fechada, não havia nenhum amigo, nem as moças da Dona Zizi, nem a turma do carteado, nem o Tico Cavaquinho, seu melhor amigo. Aquilo só podia ser um milagre - São Jorge viu seu sofrimento e intercedeu por sua graça. Ajoelhou-se em prantos na porta principal do pequeno templo, agradecendo a graça alcançada. A moça pálida fugira, ainda na madrugada, com Renatinho da Zefa, um delinquente de menor escala na hierarquia do Porto.

É isto aí!

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