quarta-feira, 8 de abril de 2020

Memórias virais


Tinha um sujeito que morava três casas para baixo, digo, para cima, porque o córrego corria do oeste para o leste e ele morava no sentido oeste. Casado, três filhos, duas meninas e um menino. Toda manhã passava em sua elegante bicicleta verde-esmeralda, alemã, de marca Göricke, que era um objeto de desejo que eu tinha para quando crescesse. 

A família era proibida de mexer com o veículo, mas quando chegava em casa, ali pelas dezessete horas, a meninada toda corria para ver de perto aquele símbolo místico da liberdade e da aventura, e eu ia também. Imaginava pilotar uma máquina daquele porte para além do mundo, rumo ao desconhecido.

Tinha Pneus Balão aro 26", plaqueta Göricke do caximbo dianteiro em relevo, pedivela e guidão com a marca Göricke estampada em baixo relevo, um emblema de paralamas muito bonito; freio tipo Varão dianteiro e traseiro; caixas de direção e central originais; partes cromadas lustradas e brilhantes; aros alinhados; punhos ergonômicos, de madeira nobre, e o cobre-corrente justaposto; um refletor traseiro; uma elegante campainha cromada no lado esquerdo do guidão e além disto reluzia o dínamo e o farol Inglês Lucas, entre dois retrovisores perfeitos.

O selim era fantástico, com três molas amortecedoras imensas, acolchoado, com uma bolsa de couro na sua parte traseira onde levava material de reparo, uma câmara vazia, tampas de pisto, uma chave de boca com 13 funções, uma tesoura, dois canivetes, lixa, cola, uma pequena pedra de amolar e um alicate. A bomba de ar ficava numa das duas caixas longitudinais encaixadas e soldadas imediatamente sob o bagageiro, uma de cada lado, com abertura lateral, travadas com três presilhas largas.

Na outra caixa levava diversas ferramentas, como um formão, chaves de fenda,chaves Kemli, dois alicates maiores e uma faca estilo punhal. Dizia que as eventualidades são muitas quando se está numa estrada. Além disto, duas bolsas laterais de couro pendiam sobre a roda traseira, fixadas ao bagageiro, promovendo conforto e segurança ao passageiro - que nunca vi levar.

Um dia montou na sua bicicleta, saiu cedo de casa como de costume e nunca mais voltou. Nas conversas de comadres no portão, cujos ouvidos infantis ficavam antenados, soube que fugiu com Amelinha, uma mocinha sem graça, meio amarelada, cabelinho aguado, que morava nos fundos da quinta casa acima, com a mãe velha e doente. 

Hoje fiquei pensando ... puxa vida, onde ele está pedalando neste instante, livre e solto, naquela potente Göricke? Por que eu nunca comprei uma Göricke para mim?

É isto aí!

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