sábado, 17 de maio de 2014

No Divã da Pitangueira - A silente.



Era final da tarde de uma sexta-feira. Estava sozinho na clínica, preparando-me para romper a barreira do sábado, desejando estar na melhor companhia feminina, desde que fosse bonita e inteligente, a melhor companhia musical e etílica, quando adentra à sala uma mulher voluptuosa, cabelos negros, expressivos olhos azuis e sorriso com boca de luar, como nos ensinou Drummond (aqui).

Calça jeans, camisa de algodão com rendas, um suéter com casaco sobretudo que combinava com o sapato, meias coloridas, brincos grandes em aro, joias combinando com o brinco, uma charmosa boina e um batom discreto.

Foi tudo o que observei durante quarenta e cinco minutos, cujo silêncio foi tenso. Olhava-a, buscava uma resposta, media seu corpo, admirava sua beleza, expressões e o perfume que exalava.

Ao término, levantei e caminhei para a porta. Ela calmamente retirou da bolsa os duzentos reais do pagamento da sessão e colocou por sobre a mesa. Na semana seguinte e nas oito outras repetiu a cena. 

Fui em busca de uma orientação com meu analista supervisor, mestre no Colégio de Formação de Analistas da Pitangueira. Recebeu-me com a frieza de sempre, a indiferença dos doutos. Falei sobre a moça, seu silêncio, a forma como isto estava me destruindo, irritando, promovendo a ira ainda disfarçável. 

No decorrer dos eternos quinze minutos das suas sessões, ao custo de seiscentos reais por visita, acendeu um Cohiba Robusto, coçou o queixo, olhou-me no vazio e pronunciou - Olha rapaz, o silêncio é o real do discurso e anuncia o discurso do inconsciente. Saia do lugar comum e recupere a percepção do todo. 

Deixei o dinheiro por sobre uma enorme bancada lateral, onde estavam muitos pagamentos de outros muitos clientes, alguns em embrulho de presente, outros em papel higiênico limpo, outros dentro de embalagens de absorvente, outros em embalagens de preservativos, outros em sacos de vômito de vôo, outros em lenços descartáveis, muitas moedas, notas rasgadas, dinheiro com bilhetes grampeados, etc.  Saí pior do que entrei. O que não estava vendo?

Por onde começar? Ela ficava praticamente imóvel, sem muita expressão facial ou gestos manuais. Não tinha movimento involuntário das pernas, nem mexia no cabelo..., espera, tem alguma coisa aí. Vou buscar nas anotações o que não vi:

1ª semana - Silêncio total. Vestia calça jeans, camisa de algodão com rendas, um suéter com casaco sobretudo que combinava com o sapato, meias coloridas, brincos grandes em aro, joias combinando com o brinco, uma charmosa boina e um batom discreto.

2ª semana - Silêncio total. Vestia calça jeans, camisa de algodão com rendas, um suéter com casaco sobretudo que combinava com o sapato, meias coloridas, brincos grandes em aro, joias combinando com o brinco e um batom discreto.

3ª semana - Silêncio total. Vestia calça jeans, camisa de algodão com rendas, um suéter com casaco sobretudo que combinava com o sapato, meias coloridas, brincos grandes em aro e um batom discreto.

4ª semana - Silêncio total. Vestia calça jeans, camisa de algodão com rendas, um suéter com casaco sobretudo que combinava com o sapato, brincos grandes em aro e um batom discreto.
5ª semana - Silêncio total. Vestia calça jeans, camisa de algodão com rendas, um casaco sobretudo que combinava com o sapato, brincos grandes em aro e um batom discreto.

6ª semana - Silêncio total. Vestia calça jeans, camisa de algodão com rendas, um casaco sobretudo que combinava com o sapato, brincos pequenos em aro e um batom discreto.

7ª semana -  Silêncio total. Vestia calça jeans, camisa de algodão com rendas, um casaco sobretudo que combinava com o sapato e um batom discreto.

8ª semana - Silêncio total. Vestia calça jeans, camisa de algodão com rendas, um casaco sobretudo, sandália e um batom vermelho.

9ª semana - Silêncio total. Vestia calça jeans, um casaco sobretudo, sandália e um batom carmim.

10ª semana - Silêncio total. Vestia bermuda desfiada jeans, casaco sobretudo, sandália e um batom magenta.

Naquela sexta-feira a recebi com um largo sorriso. Sentou-se trajando um sobretudo. Pedi para tirá-lo. Por debaixo um corpete branco de renda e meias brancas com cinta-liga...

A partir daquele dia nunca mais as sexta-feiras foram as mesmas.

E ela, decididamente falou: - Até que enfim!

É isto aí!

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