quinta-feira, 10 de abril de 2014

Receita de Mulher - Vinicius de Moraes


As muito feias que me perdoem
mas beleza é fundamental.
É preciso que haja
qualquer coisa de flor em tudo isso.
Qualquer coisa de dança,
qualquer coisa de haute couture em tudo isso. 
(ou então que a mulher se socialize
elegantemente em azul,
como na República Popular Chinesa).

Não há meio-termo possível.
É preciso que tudo isso seja belo.
É preciso que súbito tenha-se a impressão
de ver uma garça apenas pousada
e que um rosto adquira de vez em quando essa cor 
só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, 
mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens.

É preciso, é absolutamente preciso
que seja tudo belo e inesperado.
É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard 
e que se acaricie nuns braços.
Alguma coisa além da carne: 
que se os toque como no âmbar de uma tarde.

Ah, deixai-me dizer-vos
que é preciso que a mulher que ali está
como a corola ante o pássaro, seja bela.
Ou tenha pelo menos um rosto
que lembre um templo
 e seja leve como um resto de nuvem: 
mas que seja uma nuvem
com olhos e nádegas.
Nádegas é importantíssimo.

Olhos então nem se fala,
que olhe com certa maldade inocente.
Uma boca fresca (nunca úmida!)
é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras;
que uns ossos despontem,
sobretudo a rótula
no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas
no enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:
uma mulher sem saboneteiras
é como um rio sem pontes. 

Indispensável que haja uma hipótese de barriguinha, 
e em seguida a mulher se alteie em cálice,
e que seus seios sejam uma expressão greco-romana,
mas que gótica ou barroca
e possam iluminar o escuro
com uma capacidade mínima de cinco velas.

Sobremodo pertinaz é estarem a caveira
e a coluna vertebral levemente à mostra; 
e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes,
mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas,
lisas como a pétala,
e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.

É aconselhável na axila uma doce relva
com aroma próprio apenas sensível
(um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
de forma que a cabeça dê por vezes
a impressão de nada ter a ver com o corpo, 
e a mulher não lembre flores sem mistério.

Pés e mãos devem conter
elementos góticos discretos.
A pele deve ser fresca nas mãos,
nos braços, no dorso, e na face
mas que as concavidades e reentrâncias
tenham uma temperatura
nunca inferior a 37 graus centígrados,
podendo eventualmente provocar
queimaduras do primeiro grau. 

Os olhos, que sejam de preferencia grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra;
e que se coloquem sempre para lá
de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar.

Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa,
que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão
de que se fechar os olhos
ao abri-los ela não estará mais presente
Com seu sorriso e suas tramas.
Que ela surja, não venha;
parta, não vá,
E que possua uma certa capacidade
de emudecer subitamente
e nos fazer beber o fel da dúvida.

Oh, sobretudo que ela não perca nunca,
não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias,
a sua infinita volubilidade de pássaro;
e que acariciada no fundo de si mesma
transforme-se em fera sem perder sua graça de ave;
e que exale sempre o impossível perfume;
e destile sempre o embriagante mel;
e cante sempre o inaudível canto
da sua combustão;

e não deixe de ser nunca
a eterna dançarina do efêmero;
e em sua incalculável imperfeição
constitua a coisa mais bela e mais perfeita
de toda a criação imunerável.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Gratidão!